Relatos e emoção no encontro ‘MULHERIDADES TRANS’, na ADunicamp


A academia, assim como o conjunto da sociedade, precisa ampliar com urgência sua capacidade de entender, receber e interagir com toda a diversidade da população brasileira. E esse olhar tem que ser permanente nas ações da ADunicamp, que defende e luta por uma universidade democrática, pública e com liberdade de pensamento e ensino.

Essa foi uma das principais conclusões do encontro “MULHERIDADES TRANS”, realizado nesta quarta-feira, 15 de março, no Auditório da ADunicamp, e que recebeu as transsexuais Sara Wagner York, Luara Souza e Elisa Murgel, todas elas com fortes ligações com a academia e o ensino.

O encontro foi realizado para marcar os eventos do Dia Internacional de Luta das Mulheres, 8 de março, e o Mês da Mulher. “Escolhemos esse tema para dar visibilidade à cultura travesti, que permeia toda a sociedade brasileira e é um dos principais alvos da violência de gênero no país”, apontou a professora Maria José de Mesquita (IG), uma das mediadoras da Mesa.

A professora Diama Vale (FCM), que também mediou o encontro, lembrou que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, com 131 assassinatos em 2022 e 20 suicídios em virtude de discriminação e preconceito. O segundo país, com maior número é México, onde foram registradas 65 mortes no mesmo período, ou seja, menos da metade.

“Tratar desse tema, trazer ele para dentro da universidade, é uma responsabilidade acadêmica. Essa é uma semana de luta para intensificar as pautas feministas pelo direito das mulheres. E nossa sensação é que passou da hora da luta feminista incorporar as lutas trans. Este encontro marca um momento de luta do nosso sindicato pelo direito de todas as mulheres”, avaliou Diama.

O OUTRO LADO

“Existe um mundo que é preparado para todos aqueles que ganharam todos os prêmios, o mundo dos capazes do superprodutivos e a gente está do lado oposto deste mundo. A gente aprendeu a lidar com as perdas, com as dores, com nossas incapacidades”, afirmou a primeira palestrante do encontro, Sara Wagner York, doutoranda e mestra em Educação pela UERJ, também graduada em Letras, Pedagogia e Jornalismo, premiada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, por sua vasta atuação na área educacional.

Dedicada, nos últimos anos, ao estudo do que chama de cibercultura e coautora do livro “Ciberfeminismos e Cibereducações – Narrativas de mulheres durante a pandemia de Covid-19”, recém lançado pela Editora da Universidade Federal da Bahia, Sara apontou que esse espaço virtual, que vem sendo construído há pouco mais duas décadas, é exemplar do tratamento que a sociedade dá às comunidades trans.

Para ela, “esse novo modelo de pedagogia, inaugurado por tantas pessoas e tantos professores” é um retrato da gente desejada pelo lado mais conservador da sociedade. “Um local onde gente como eu éramos negadas de acessar, de trafegar, pois não éramos vistas com um corpo produtivo útil, éramos vistas como incapazes, deficientes, tudo que esse mundo capitalista ressalta”, apontou.

É um espaço pedagógico, afirmou ela, que dialoga em excesso com “os frames conservadores”, uma busca permanente pelo domínio de desejos. “O que significa que se eu conseguir dominar seu desejo vou conseguir te enfiar coisas, vender coisas e ideias e condutas para você”.

Mas esse é um espaço que vem mudando, assim como o conjunto da sociedade, graças às lutas de pessoas e movimentos que não se enquadram “nessa normalidade”. “Uma das questões que tínhamos era dialogar com esse feminismo que foi criado ao longo deste século, que veio dialogando com movimentos de mulheres pretas. Mas chegamos agora nesse ponto. O que é ser mulher em 2023? O que é o sexo? O que é gênero?”, questiona, alertando para a urgência de que os movimentos feministas também se abram para as demandas e lutas das mulheres trans.

Sara contou que foi expulsa de casa, aos 12 anos, pois desde muito nova já se sentia mulher e era chamada de “viadinha” na escola e na vizinhança. Acabou adotada por travestis e conseguiu construir sua vida a partir de então. Mas aos pouco, para ela, o preconceito veio sendo combatido. “As novas gerações, como a do meu neto, já pensam totalmente diferente, já questionam a discriminação e o preconceito. Daí a importância de encontros como este, aqui na ADunicamp”.

ACOLHIMENTO ESSENCIAL

Luara Souza, a segunda palestrante do encontro, tem tido uma atuação decisiva na defesa de mulheres trans na Unicamp e afirmou que encontros como esse promovido pela ADunicamp são fundamentais para quebrar barreiras de preconceitos dentro da universidade. “A ADunicamp tem tido um papel muito forte, apoiando eventos e ações nossas. A realidade tem se mostrado muito discriminatória e a ADunicamp tem sido acolhedora neste seu espaço”, afirmou.

O significado de “acolher” tem um sentido especial para Luara, que atua no que chama de “quilombos de acolhimento” de travestis, mulheres negras e indígenas trans e mulheres negras discriminadas. Ela é estudante de Ciências Sociais na Unicamp, cofundadora do Núcleo de Consciência Trans, integra a atual gestão do DCE e trabalha como artista plástica no Ateliê TRANSmoras.

Luara se define como “travesti preta”, e também dá um significado especial para esse termo. Para ela, ser “travesti” implica em aceitar uma outra identidade de gênero, além da dualidade homem/mulher, pois mantém as duas em seu corpo.

Os quilombos de acolhimento relatados por Luara foram fundamentais não só para a sua vida pessoal, pois ela recebeu esse acolhimento quando precisou, mas para acolher e “compartilhar dores e prazeres” entre trans e travestis em diferentes situações. “São espaços de resistência”. Segundo ela, há casas de acolhimento que trabalham com reciclagem de materiais, cultuam seus orixás, resgatam culturas ancestrais.

“As casas de acolhimento trazem do lixo a possibilidade de retomar a vida. Esses caminhos é que me possibilitaram não estar morta hoje. Me permitiram entrar na Unicamp, conduzir a vida. Daí a importância para mim da criação do Núcleo de Consciência Trans, que tenta inclusive combater o preconceito aqui na Universidade. Se a gente não tem esses quilombos a gente tende a esquecer o que a vida é, o que poderia ser e o que poderá ser”, relatou ela.

Para Luara, a transfobia com travestis e mulheres trans começa no momento em que saem de casa. “As pessoas veem um corpo estranho, que é diferente do nosso cotidiano, nem homem nem mulher. É outro gênero e a gente tem tendência a rejeitar aquilo que é diferente que é estranho. O meu é um corpo negro e travesti, então somente o meu corpo, a minha presença já significa muito. E muito mais quando se fala sobre essa presença, como falamos aqui, hoje”, pontuou.

 MULHER AOS 59 ANOS

Elisa Murgel, a terceira palestrante no encontro, tem uma história singular sobre a qual ela fez um longo relato. Nascida em 1.961, ela viveu como um homem bem sucedido, casado, com dois filhos, conhecedor de vários países ao redor do mundo e respeitadíssimo profissionalmente. Só aos 59 anos decidiu assumir a sua personalidade de mulher, que sempre habitara nela e ela sempre ocultou, desde a sua mais tenra infância.

Elisa tem uma longa carreira acadêmica. É engenheira mecânica e mestra em Engenharia Sanitária pela Escola Politécnica da USP, lecionou na pós-graduação na FESP-SP e na Universidade Senac, realizou uma imensidade de trabalhos de planejamento urbano, estudos de impacto ambiental e de poluição sonora para empresas do Brasil e do exterior. Tem cinco livros publicados e hoje atua como consultora ambiental. Toca guitarra, ama os blues, e tem vários prêmios como fotógrafa artística.

Minha história não é uma história rara, mas é uma história que nunca aparece, pois ficamos escondidas. Felizmente estamos aqui, nesta mesa redonda, pois acontecimentos como esse abrem espaços de luta contra o preconceito. Preconceito é um conceito prévio que as pessoas tem antes de se inteirar das coisas, por isso devem se inteirar, antes de qualquer juízo prévio”, defendeu ela.

Elisa relatou que nasceu e depois viveu os primeiros anos da sua vida numa época de censura, de falta de informação, em plena ditadura militar, dentro de uma família com posições políticas de direita. Estudou em colégios tradicionais, formou-se em 1983, casou-se e desde então só atuou em ótimos empregos.

“Eu estava no topo da cadeia alimentar: homem branco, boa vida, bela casa, viajava sempre. Enfim, a vida modelo da sociedade capitalista de consumo. Eu tinha tudo, só não tinha minha identidade”. A identidade feminina que, diz ela, já tinha consciência desde que era criança. “Quando menina, com dois ou três anos, eu acreditava que quando chegasse aos seis, viria uma fada e me transformaria em menina, como era a minha irmã mais velha”.

Mas a fada não veio. E, desde então, Elisa conta que escondeu por toda a vida essa identidade. Ainda criança ela escolheu para si o nome Elisa, e sempre o guardou em segredo. “Já adulto, sabia sobre a vida de muitas mulheres trans que tomaram a decisão, abriram caminho. Mas eu não tive essa coragem, não consegui largar o conforto, a segurança, a tranquilidade desta vida burguesa e me guardei assim por 59 anos, quando tive problema sério de saúde, quase morri de embolia pulmonar. Quando me curei estava decidida a fazer a transição que adiei por toda a vida”, conta ela.

A imagem “extremamente masculina” que tinha ficou guardada, pois segundo ela mostra também “as experiências e lembranças” de toda a sua vida. “Hoje eu finalmente vivo de acordo com minha identidade, sou uma mulher comum, atuo como engenheira ambiental, tenho sobrinhos que me adoram”.

A “transição”, como ela define, mudou radicalmente o seu viver no mundo, mas os impactos profissionais e de relacionamento foram muito pequenos. “Além da minha mulher que se afastou e não quer mais me ver e dos meus filhos que estão processando a mudança, de resto fui muito bem acolhida na sociedade e no meio profissional. A diferença é que com muitas pessoas com que eu tinha uma relação profissional, eu me aproximei, me tornei uma pessoa mais próximas, mais humana, mais afetiva, porque passei a ser eu ser mesma”.

EMOÇÃO

Ao final do encontro, a presidenta da ADunicamp, professora Silvia Gatti (IB), emocionada com os relatos agradeceu as três palestrantes e garantiu que a entidade manterá as portas abertas para ações semelhantes.

“O que nós representamos aqui é a tentativa de mudança dentro da Universidade, de seus preconceitos. Queremos fazer com que a Universidade esteja presente aqui, que possa ouvi-las. Um evento como esse tem uma importância gigantesca, mas só vai ser efetivamente importante se continuarmos com atitudes como essa. Não basta fazer uma vez, temos que fazer atos contínuos de recepção de toda a gente, quer sejam estudantes, parceiros, docentes. O espaço da ADunicamp é e deverá ser sempre um espaço plural, um espaço de acolhimento. A ADunicamp vai continuar trazendo mulheres e pessoas maravilhosas como vocês”, garantiu ela.

EVENTO DISPONÍVEL NO YOUTUBE

A mesa MULHERIDADES TRANS, realizada pela ADunicamp foi transmitida pelo canal da entidade no Youtube e segue disponível para quem desejar assistir. Para isso, acesse ao canal da ADu ou clique no player abaixo.

 

GALERIA
Fotos: Paula Vianna/ADunicamp

Mesa ‘Mulheridades Trans’ na ADunicamp. Na mesa, da esquerda para direita: Profa. Maria José Mesquinta, Luara Souza, Sara Wagner Yorg, Elisa Murgel e Profa. Diama Vale

 

Profa. Silvia Gatti, presidenta da ADunicamp, agradece, emocionada, a presença de cada integrante da mesa ‘Mulheridades Trans’

 

Profa. Diama Vale mostra gráfico sobre assassinatos de pessoas trans no Brasil

 

Mesa ‘Mulheridades Trans’ na ADunicamp. Na mesa, da esquerda para direita: Profa. Maria José Mesquinta, Luara Souza, Sara Wagner Yorg e Elisa Murgel.

 


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