Sistema universitário norte-americano: um modelo a ser seguido? A questão do crédito educativo


Diante do pano de fundo da crise de financiamento das universidades estaduais paulistas, que não raro se tenta camuflar pela via de um discurso sobre “crise financeira” ou “de gestão”, não é incomum que docentes da própria Unicamp evoquem o sistema norte-americano como um modelo a ser seguido. De modo geral, quem defende tais ideias costuma esgrimar números sobre a capacidade de produzir conhecimento das grandes universidades da Ivy League, como Harvard, MIT e Stanford, arrolando estatísticas sobre patentes, prêmios recebidos etc. Fala-se também das doações de ex-alunos como uma panaceia para equacionar o financiamento de ensino e pesquisa nessas instituições – passando ao largo do fato de que, apesar de particulares, as grandes universidades norte-americanas recebem verbas expressivas do setor público, notadamente para pesquisa de armamentos e o setor energético. Debatedores mais sóbrios costumam levar em conta esse último aspecto, do aporte de recursos públicos para as instituições privadas no sistema de educação superior nos EUA. Um tema menos discutido dentre nós, e que provavelmente constitui o nó górdio da questão, é o papel exercido pelo sistema de crédito estudantil, que tem tudo para tornar-se a próxima bolha a implodir o sistema financeiro norte-americano, com repercussões em escala mundial. Levar em conta os problemas ligados a esse sistema é certamente um bom antídoto contra a falácia de que um remédio adequado para superar a crise de financiamento das universidades estaduais paulistas seria a cobrança de mensalidades, como a grande mídia e até mesmo professores pesquisadores de instituições como USP e Unicamp têm afirmado de forma reiterada, seja em canais internos a essas instituições, seja na própria grande mídia, cuja hostilidade ao sistema público de ensino é notória. Faz-se aqui uma breve síntese de alguns aspectos do problema, recorrendo a fontes que ainda não se renderam por completo à mentalidade da pós-verdade, em que o que conta é apenas a construção de uma narrativa favorável a determinados atores, e não o respeito a fatos e argumentos racionais.
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Apontado de forma recorrente como alternativa para o modelo de ensino universitário no Brasil, uma das essências do modelo universitário dos EUA, o crédito estudantil, vive o limiar de uma crise sem precedentes.
O crédito estudantil transformou-se numa bolha trilionária, prestes a explodir segundo analistas econômicos e, com isso, capaz de desestabilizar o sistema financeiro do país. E de provocar um efeito dominó com o mesmo alcance da explosão da bolha do crédito imobiliário que esteve na origem da crise financeira mundial iniciada em 2008.
Em apenas vinte anos, entre 1995 e 2015, o crédito estudantil nos EUA quase triplicou, atingindo a cifra de mais de US$ 1,2 trilhão. O valor corresponde a mais de que todos os débitos de cartões de crédito e do financiamento para automóveis somados. Um ano depois, a dívida já atingia a casa de US$ 1,3 trilhão, equivalente a cerca de 70% do PIB brasileiro. Esse montante, segundo o Federal Reserve, o Banco Central Americano, é devido por 43,3 milhões de pessoas, sendo que 60% desse total correspondem a créditos contraídos por estudantes de famílias de baixa renda, cada vez mais endividadas e sem condições de pagar as prestações.
Nos últimos anos, houve grande crescimento do número de matrículas em cursos universitários nos EUA e 70% dos estudantes ingressaram recorrendo a empréstimos, segundo dados de 2016 divulgados pelo governo norte-americano.
De acordo com reportagem publicada, em 2015, no jornal brasileiro Valor Econômico, “sete de cada dez estudantes universitários se formam com dívidas”. “Além disso”, informava o jornal, “o crédito educativo responde por 45% dos ativos financeiros do governo federal americano”. De acordo com analistas, já então “os riscos de calote e de atraso de pagamento aumentariam, juntamente com a insegurança financeira e a instabilidade geral” do país.
Como o governo norte-americano garante a dívida do crédito estudantil, os bancos baixaram o critério para concessão de crédito, assim como ocorreu com a bolha do setor imobiliário que explodiu em 2008, com reflexos no sistema financeiro do mundo inteiro. O crédito abundante levou a um aumento desproporcional das anuidades, forçando estudantes a contrair dívida maiores para estudar. O fenômeno fez surgir também uma indústria de universidades com fins lucrativos, que oferecem em geral um ensino medíocre, as chamadas “for profit” que cresceu enormemente nos últimos 10 anos.
Estatísticas recentes mostram que quase 100% dos alunos das “for profit” se endividam para poder estudar. Em média, a dívida acumulada por esses estudantes no momento da formatura é de US$ 35.753 (mais de R$ 120.000). Na direção inversa, o salário dos recém-formados sofreu uma queda média de 10% ao longo dos últimos 10 anos.
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RELATOS
Em 2016, o site da BBC Brasil publicou extensa reportagem sobre o tema, com relatos de casos exemplares, como o de Carolyin Chimeri que, formada e pós-graduada, acumulara uma dívida de US$ 238 mil (R$ 800,2 mil em valores de hoje) em crédito universitário. Trabalhando como professora e recebendo salário irrisório, ela se dizia praticamente incapacitada de pagar as prestações, que se arrastariam ainda por muitos e muitos anos.
Exemplos como o dela se multiplicam nos EUA. A ONG Student Debt Crisis (crise da dívida estudantil), que tenta reformar o sistema de financiamento estudantil nos EUA, repassou à BBC diversos depoimentos de ex-alunos endividados, com dívidas na casa dos seis dígitos.
Depoimentos compilados pela ONG contam o caso de uma advogada recém-formada e desempregada na Califórnia, com dívida próxima a US$ 400 mil e que se dizia “ansiosa e deprimida” diante da perspectiva de jamais conseguir quitar o valor; e o de uma ex-estudante em Montana que, por causa dos juros, tinha visto seu empréstimo de US$ 30 mil alcançar US$ 300 mil em pouco mais de duas décadas, embora jamais tenha deixado de pagar parcelas.
Em depoimento à BBC, a diretora da ONG, Natalia Abrams, apontou que as pessoas com grandes dívidas ficam devendo pelo resto da vida e que 20% dos norte-americanos com mais de 50 anos têm até hoje dívidas estudantis. Ainda mais afetados pelo sistema de crédito estão os grupos que não conseguiram terminar o curso universitário e, mesmo com dívidas astronômicas, ficam alijados dos empregos mais bem remunerados.
CRISE ANUNCIADA
Os alertas sobre a explosão da dívida estudantil e o risco de explosão da bolha no sistema financeiro não são novos. Já em 2012, como retratou reportagem publicada no jornal Le Monde, especialistas perguntavam se, depois do subprime, já não chegava a vez do estouro da bolha da dívida estudantil no que chamava de “interminável folhetim da crise do capitalismo norte-americano”.
“O crescimento vertiginoso dessa dívida resulta da combinação de vários fatores. O primeiro reside na história do ensino superior nos Estados Unidos. Herdeiros de faculdades religiosas e universidades de pesquisa fundadas no século XIX por mecenas abastados – como Cornell, Johns Hopkins, Universidade de Chicago ou Stanford –, os grandes estabelecimentos privados de ensino superior estão, desde sua fundação, entre os mais caros do mundo: um ano de estudos em Harvard custa em média US$ 36 mil (US$ 52.650 se incluídos os custos de subsistência). E são os estabelecimentos privados que definem o preço no mercado: a concorrência generalizada entre faculdades para atrair o máximo de estudantes possível os incita a multiplicar as despesas a fim de oferecer mensalidades comparáveis à de uma instituição como Harvard”, relatava o jornal. “As subvenções do Estado não são suficientes, e as direções transferem uma parte dos custos para as taxas de matrícula, cada vez mais elevadas. As universidades públicas não são exceção: inicialmente criadas para oferecer uma solução alternativa quase gratuita ao setor privado, elas faturam atualmente cerca de US$ 13 mil por ano e por aluno. O ideal original evaporou-se e, para os estudantes, a conta não para de subir”.
As bolsas de estudo concedidas diretamente aos estudantes foram instituídas na década de 1960, mas não acompanharam o crescimento dos custos estudantis. A principal entre elas, a “Pell grant”, com teto fixado em US$ 5,5 mil por ano, tem valor médio correspondente a apenas um terço de um ano universitário. Assim, mesmo os estudantes com bolsa são obrigados a recorrer ao crédito estatal ou privado.
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OBAMA AMEAÇA
Diante da situação cada vez mais preocupante, a partir de 2012 o presidente Barack Obama já ameaçava intervenções do governo – como a redução das subvenções públicas para as universidades que aumentassem rapidamente suas taxas de matrícula. Obama tentou reduzir, sem sucesso, a atuação dos bancos comerciais no programa federal de auxílio estudantil.
Na verdade, qualquer tentativa de mudança do cenário esbarra nos interesses do sistema bancário, que só em juros contabiliza cifras de mais de US$ 30 bilhões ao ano com o crédito estudantil.
Naquele mesmo 2012, Rajeev V. Date, diretor adjunto do Gabinete de Proteção do Consumidor Financeiro, órgão federal criado após a crise financeira de 2008, dizia em depoimento ao jornal The New York Times: “Se alguém não está pensando para onde isso irá nos levar nos próximos anos, então não está percebendo os sinais de alerta”.
Date já comparava, desde então, o endividamento estudantil com as hipotecas de risco da bolha imobiliária. “Mas suas raízes são profundas e os fatores que contribuem para a atual situação – incluindo equipes de marketing das universidades, legisladores estaduais, estudantes e suas famílias – têm sido possíveis por causa de uma dinâmica econômica básica: uma demanda insaciável por educação universitária, a quase qualquer preço, e a facilidade de se obter empréstimos, principalmente do governo federal”, avaliava o The New York Times.
Embora estudantes mais endividados estudem nas universidades “for profit”, nos Estados Unidos as públicas também costumam ser pagas e estudar em algumas chega a custar US$ 40 mil ao ano. Os juros do sistema bancário norte-americano para o crédito estudantil são definidos pelo Congresso e variam de 3,76% a 6,31% ao ano.
[box type=”info”]O filme Torre de Marfim, exibido no Cineclube ADunicamp em 2016, discute o impacto da mercantilização em vários tipos de instituições de ensino superior nos EUA (cf. resenha e cópia –sem legenda– no YouTube).[/box]
BRASIL
No Brasil, o principal programa de crédito estudantil, o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), depois de sofrer queda acentuada nos anos pós-crise, voltou a crescer este ano. Em 2016, eram 222 mil linhas de crédito, mas em 2018 o governo federal anunciou 310 mil vagas para o novo FIES.
O novo FIES veio com mudanças nos mecanismos de seleção, de abrangência dos recursos, na taxa de juros e no prazo para pagamento do saldo devedor. A faixa de renda para os interessados, que antes era de até três salários mínimos, foi ampliada para até cinco salários mínimos. De modo geral, o novo FIES tornou-se também mais interessante para o sistema bancário/financeiro.
O novo FIES oferece 100 mil vagas a juro zero para estudantes de baixa renda. As demais vagas são oferecidas com juros variáveis, de acordo com o banco onde for fechado o financiamento, diferentemente do que ocorria até 2017, quando a taxa de juros era fixada pelo governo em 6,5% ao ano. Ficou estabelecido também o fim do prazo de carência de 18 meses, após a conclusão do curso, para que o estudante comece a pagar o financiamento. Ao anunciar o novo FIES, no final de 2017, o ministro da Educação, Mendonça Filho, afirmou que com as novas regras o estudante passa a iniciar o pagamento do crédito no mês seguinte ao término do curso, desde que esteja empregado, e com prazo máximo para pagamento será de 14 anos. Nesses casos, o valor do financiamento é descontado diretamente do salário do empregado que tenha contrato formal. Caso o estudante não tenha renda, o saldo devedor deve ser quitado em prestações mensais equivalentes ao pagamento mínimo do financiamento. O mesmo critério é utilizado para estudantes que perdem o emprego e para os que desistem antes de encerrar o curso.
A nova lei também criou o Programa Especial de Regularização do FIES. Dados do Ministério da Educação apontam que a taxa de inadimplência do FIES atingiu 50,1%, sendo que em 2016 o ônus fiscal do fundo chegou a R$ 32 bilhões. O novo programa permite que aqueles que tiverem contratos atrasados, com parcelas vencidas até 30 de abril de 2017, possam fazer o pagamento quitando 20% do saldo devedor em cinco vezes e o restante em até 175 parcelas.
Mudaram, também, as regras sobre garantias para o setor de ensino superior. De acordo com analistas, ainda é difícil avaliar os impactos que essas mudanças terão em longo prazo. A tendência, pelo menos, é a de que o problema do endividamento e da inadimplência do FIES, já acumulada na casa de dezenas de bilhões, seja contornado com algum tipo de estatização das dívidas, via renegociação, colocando o peso sobre os indivíduos, como ocorre nos Estados Unidos. O MEC chama isso de “compartilhamento de riscos”.
Como o novo FIES transferiu o risco de inadimplência para os bancos, os estudantes que mais precisam da política pública são também os que terão mais dificuldades para atender aos critérios e exigências dos agentes financeiros.
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FONTES CITADAS
(1) http://www.valor.com.br/opiniao/4308522/bolha-do-ensino-superior-nos-eua
(2) http://www.bbc.com/portuguese/geral-37090687 A vida dos estudantes americanos com dívidas acima dos R$ 500 mil
(3) http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2017-12/entenda-regras-no-novo-fies
(4) https://abmes.org.br/noticias/detalhe/2716
(5) https://rcesarnet.wordpress.com/2011/10/24/credito-estudantil-a-nova-bolha-americana/
(6)https://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/23/sociedad/1403545667_671467.html
(7) http://diplomatique.org.br/a-divida-estudantil-nos-estados-unidos/
(8)http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2012-05-21/uma-geracao-imersa-em-emprestimos-estudantis.html  – Nos EUA, uma geração imersa em empréstimos estudantis The New York Times


1 Comentários

ANTONIO

Em primeiro lugar, gostaria de informar que Stanford e MIT não são da Ivy League. As universidades da Ivy League são Harvard, Yale, Princeton, Cornell, Brown, Dartmouth, UPenn e Columbia. Uma coisa que deve ser enfatizada é que a contribuição do governo americano para as universidades é mínimo. A Rockefeller University, que mais recebe do governo, alega não receber mais do que 36% de seu orçamento em verbas públicas. Mesmo assim, dinheiro do governo tem várias limitações. Por exemplo, não pode ser utilizado para comprar instrumentos. A University of California Berkeley, que é pública, afirma receber 14% do orçamento do estado e cerca de 12% do governo. A University of California San Francisco diz que recebe menos de 3% de seu orçamento do governo.

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