Divulgação | Conselhos: onde Bolsonaro vê burocracia, há democracia

Por Ana Claudia Teixeira, Luciana Tatagiba e Wagner Romão
para o blogosfera.uol (ver original aqui)
A Constituição de 1988 lançou as bases de uma mudança significativa nas relações entre o Estado e a sociedade. Os constituintes perceberam que havia uma demanda social pela construção de uma democracia que incluísse momentos fortes de escuta da cidadania, para além do voto. Havia um certo consenso de que a participação do cidadão comum, organizado em associações, melhorava a qualidade e a sustentabilidade das políticas públicas e deveria ser estimulada, com a abertura de canais institucionais de mediação entre estado, sociedade civil e mercado.
Sob a inspiração do que vinha ocorrendo na área da saúde, os congressistas estabeleceram que a sociedade civil deveria exercer controle social sobre as ações do Estado e, mais que isso, deveria atuar na própria formulação e fiscalização das políticas públicas, no âmbito municipal, estadual e federal. Foi dessa compreensão que surgiram os conselhos de políticas públicas, e inúmeras outras inovações institucionais participativas como as conferências, audiências públicas, planos diretores e ouvidorias, em diferentes setores de políticas públicas, já ao longo dos anos de 1990.
Há intensa produção acadêmica no Brasil e no exterior que conta essa história da democracia “from below”, ou, nos termos consagrados por Boaventura de Souza, das experiências que “democratizam a democracia”, e seus impactos sobre a desigualdade, como por exemplo o estudo de Adrian Gurza Lavalle e Leonardo Barone sobre a correlação positiva nos municípios entre a existência de conselhos e melhores índices de desenvolvimento humano.
Os conselhos de políticas públicas foram os espaços que mais se institucionalizaram, por força de lei, e estão hoje espalhados em todos os municípios brasileiros, e em diferentes setores de políticas públicas. A ideia basilar que fundamenta os conselhos é que o Estado não sabe tudo e que, em sociedades complexas como a nossa, a elaboração da política pública deve incorporar diferentes pontos de vista. Os conselhos de políticas públicas não são espaços do Estado e nem dos movimentos sociais. São arenas institucionais voltadas à participação dos cidadãos organizados na construção da coisa pública, ao lado do Estado.
Eles são estruturas permanentes compostas em parte por membros do governo indicados por seus superiores e por especialistas e representantes de entidades da sociedade civil e do mercado, atuando de forma não remunerada. São, portanto, espaços de oxigenação da máquina pública, em que se exercita a crítica e o contraditório, elementos fundamentais para a boa condução das políticas públicas – que necessariamente devem ser alvo de monitoramento e avaliação externas. Constituem-se em peças-chave de sistemas de políticas como os Sistemas Únicos de Saúde e de Assistência Social e as estruturas de ministérios como o Ministério da Educação e o Ministério do Meio Ambiente. Vertebram, monitoram e aconselham as autoridades para a melhor execução de suas funções constitucionais.
É exatamente esta forma de controle social, construída por gerações de gestores públicos, ativistas da sociedade civil, acadêmicos, políticos e técnicos governamentais que está sob ataque do governo Bolsonaro.
O Conselho Nacional de Direitos Humanos e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão já haviam expressado preocupação com a inatividade dos conselhos nestes primeiros dois meses de governo, assim como a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Além disso, foi revelador o veto de Bolsonaro à especialista Ilona Szabó, convidada pelo ministro Sergio Moro para ocupar uma suplência no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
A notícia de hoje – publicada no Blog Ambiência, da Folha – demonstra que há uma ação efetiva no sentido da extinção da participação social nas políticas públicas. A matéria tem foco na extinção de comitês e do próprio Conselho Nacional do Meio Ambiente, instituição criada ainda no governo do general Figueiredo, em 1981. Mas, além deste setor, verificou-se que ofício advindo da Casa Civil foi enviado a 19 ministérios solicitando “análise, extinção, adequação ou fusão” destes colegiados. Considera-se “como regra geral” que sejam extintos os conselhos e comissões que não tenham se reunido nos últimos 30 dias. Provavelmente essa regra deverá se aplicar a algo como 90% dos colegiados e previstos em legislação federal.
Sob o pretexto de desburocratizar a gestão, o governo Bolsonaro ataca o princípio constitucional da participação social. Não se pode numa canetada jogar fora uma construção institucional de décadas que tem assegurado a ampliação de uma agenda de direitos, construída em estreita sintonia com o público alvo das políticas. É evidente que a participação cidadã tem incomodado os interesses políticos e econômicos dos atuais grupos no poder. A questão que ainda precisamos responder é por quê.
O que sabemos é que, por um lado, espaços como os conselhos impõem a convivência e o respeito ao contraditório, habilidade que o governo Bolsonaro não tem, nem demonstra disposição de aprender. De outro, exigem pensar as políticas públicas para além dos próprios governos, independentemente dos seus partidos, com planejamento de longo prazo e em busca da garantia dos direitos. Exigem pensar a democracia como um processo que agrega a sabedoria acumulada de agentes do Estado e da sociedade civil, algo muito distante do imediatismo que tem orientado esses primeiros meses de governo.
*Ana Claudia Teixeira, Luciana Tatagiba e Wagner Romão (presidente da ADunicamp) são coordenadores do Nepac – Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva, da Unicamp.
**As opiniões expressas nos textos assinados são de total responsabilidade do(a)s autore(a)s e não refletem necessariamente a posição oficial da entidade, nem de qualquer de suas instâncias (Assembleia Geral, Conselho de Representantes e Diretoria).

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