MILTON JOSÉ DE ALMEIDA. Memórias e lembranças


Agueda Bernardete Bittencourt,
Profa. da Faculdade de Educação, Unicamp

Quando pensei em fazer uma homenagem ao professor Milton José de Almeida, considerei falar sobre ele, falar para ele ou com ele. Optei por partilhar esse breve texto com ele, começar por apresentar um extrato de seu “Memorial”, escrito dois anos antes de sua morte. Para responder a seguinte pergunta: como se pensava, o Milton, nos seus últimos tempos?

“Faz muitos, muitos anos que ele entra e sai da escola. Desde os seis anos. Muitos mais dias ele esteve dentro delas do que, poderia dizer, ao ar livre. Em sua semente grega, escola é tempo livre, mas de alguém que não faz trabalho servil; de um homem livre, que poderia voluntariamente se aprisionar nos estudos. Ele cria ilusões. Cria muitas. Dentre elas, esta: imaginar que estar numa escola é estar mais livre. Certa vez… Ele trabalha (va) numa empresa e resolve ser professor numa escola pública, a que chamava de estadual. Larga a empresa e fica com metade do salario. Vai livremente ser professor. Ainda esta (va) no segundo ano do curso de Letras.

A ilusão vem, em parte, do horário de trabalho de professor: ele pode esparramá-lo dentro do seu tempo, e as horas entre uma escola e outra são livres. Ingenuidade e ilusão. Excetuando aquela das refeições e de alguns prazeres, as outras são da escola, da preparação de aulas, de leituras, de estudos, das aulas na universidade, que ele imagina livre também. A prisão é somente a empresa em que trabalhara! Mas, entre livros e leituras, ele já está aprisionado por gosto de necessidade desde criança. Os acessos de asma e os dias em que é jogado, quase imóvel, na cama ou na poltrona, o corpo amolecido e quente, são dias livres, livres das movimentações habituais, livres da escola. Livres para a leitura. Livres para desenhar, pintar. Ilusão maliciosa, essa de ser libertado pela doença!, que o imobiliza numa auto inspeção constante, dos estados do seu corpo, enquanto deixa alerta a imaginação. Há um quase prazer mórbido nesse estar livre por concessão.” (Memorial para o concurso de Titular (não realizado). Relato de lembranças “Ah! Verdadeiramente meu “Eu” é “Ele”?)

Desloco-me agora para minhas próprias lembranças:

Milton, na três décadas que convivemos, me apresentou uma coleção de escritores, pintores, músicos, artistas de todas as artes e que não cabem aqui neste breve texto. Vou citar uma só que me reporta à história que quero contar aqui. Lillian Hellman, autora algo maldita, fumante inveterada e sem papas na língua. Lembro especialmente de uma obra chamada “Pentimento”. Aliás foi Milton quem me explicou que “pentimento quer dizer, uma obra pintada, repintada, raspada e a descoberta de traços das obras encobertas por camadas posteriores de tinta”.

Quero lembrar os primeiros seis ou oito quadros pintados no ateliê que dividimos no Jardim Proença, entre os anos de 1998 e 2000. Eram peças de 1m, mais ou menos, em madeira leve. Milton fazia um esboço e logo começava a retocar. Eram figuras humanas, grandes, sem qualquer outra imagem de fundo. Por vezes uma única figura em fundo limpo, outras vezes eram duas ou três figuras. O sexo não era identificado, tampouco o gênero. Eram personagens calvos, brancos, grandes, de olhos pequenos, pareciam anêmicos, doentios. Não levavam adornos, nem roupas, mas não eram nus clássicos. Não sei porque, eu os imaginava sem humanidade, sem “alma”. Me despertavam certo assombro. Meu amigo trabalhou alguns meses nessa série e sempre me perguntava como eu via essas obras. Eu ficava sem palavras, tinha vergonha de dizer que eram terríveis e que me assustavam um pouco.

Um dia no ateliê, na sagrada hora do café, ao passar pela sua sala, vi com espanto que ele havia encoberto de tinta todas as obras ainda em processo.

O registro daquelas figuras ficou só na minha memória e talvez, na de algum amigo que apareceu por acaso, no ateliê nesse período. Tais peças se encontram hoje nos acervos de amigos, e aqui nessa exposição. São obras que se transformaram em outras, por pintura a óleo ou por colagem e pintura.

Aquelas primeiras figuras permanecem como pentimento nas obras e em minha memória. Passaram-se mais de 20 anos e me lembro muito dessas obras efêmeras e do Milton, algo angustiado, em relação a elas. Hoje, aquelas figuras se sobrepõem, na minha imaginação, a outras que perambulam pelas portas dos quarteis, pelas estradas e, praças públicas a espera não se sabe de quê, enquanto vomitam lamentos e agressões por todos os poros. Aquelas obras recobertas me reportam a esse mal-estar de pessoas sem rumo que perambulam destilando um amargo sentimento de existir. Parece-me que nosso amigo antevia o que viveríamos a partir de 2013. E amedrontado capitulou.

Assim sigo eu, seguimos nós todos – que tivemos o privilégio de conhecê-lo e desfrutar de sua rara inteligência e especial sensibilidade – sem e com ele, através do tempo…

Divulgação realizada a pedido da Profa. Silvia Gatti, na condição de associada à ADunicamp. As opiniões expressas nos textos assinados são de total responsabilidade do(a)s autore(a)s e não refletem necessariamente a posição oficial da ADunicamp, nem de qualquer uma de suas instâncias (Assembleia Geral, Conselho de Representantes e Diretoria).


1 Comentários

Álvaro Ornellas

Poderiam me esclarecer se o Professor Milton José de Almeida foi professor de Português no Colégio Estadual Dra. Maria Augusta Saraiva, na Bela Vista, SP na década de 1.975?

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