"Não se pode deixar o BC neoliberal fazer política desenvolvimentista"


por Dimalice Nunes
Professor da Unicamp e especialista em bancos públicos defende política integrada. Questão não é mudar os juros do BNDES, é a Selic ser muito alta
A Câmara aprovou na semana passada a Medida Provisória que altera a cobrança de juros por parte do BNDES, o principal banco de fomento brasileiro. O texto, editado pelo governo de Michel Temer, cria a Taxa de Longo Prazo (TLP), que substituirá, a partir de 2018, a atual taxa do banco, a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP).

Apesar da semelhança das siglas, as duas têm pouco em comum. Na prática, a mudança de TJLP para TLP significa que o governo deixará de subsidiar os empréstimos ao investimento produtivo – aqueles que geram empregos, crescimento e impostos. Assim, ao buscar financiamento, as empresas vão encontrar taxas de juros mais caras.

A TLP foi criada após o BNDES financiar companhias que foram flagradas em esquemas de corrupção, como a empreiteira Odebrecht, por exemplo. A medida é elogiada pelo chamado “mercado financeiro”, mas criticada pela indústria, que teme o travamento ainda maior da economia.

Fernando Nogueira da Costa, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, é crítico da medida. Para Costa, que foi vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal entre 2003 e 2007, o empréstimo subsidiado do BNDES se justificava, “porque gera crescimento econômico, portanto aumenta a arrecadação fiscal”.

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A atual TJLP é estabelecida a cada três meses pelo governo com base na meta de inflação para o ano. Isso quer dizer que a sua definição está sujeita a decisões políticas e pode ser usada como instrumento de estímulo ao investimento. Hoje, ela está em 7% ao ano, enquanto a taxa básica da economia, que baliza os juros cobrados no mercado, está em 9,25%. A diferença entre as duas é coberta por recursos do Tesouro Nacional.

A TLP será igual à TJLP num primeiro momento, mas dentro de cinco anos ela gradualmente irá se igualar à taxa de juros de mercado. Ou seja, pegar empréstimos ficará mais caro. A referência para a atualização será a NTN-B, um dos títulos da dívida pública emitido pelo Tesouro, acrescida da variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). “Se você tem um custo indexado que vai ser repassado para o consumidor, a inflação do passado vai para o futuro”, afirma Nogueira.

O professor da Unicamp é um defensor da função desenvolvimentista dos bancos de fomento, ameaçada com o fim do subsídio, e avalia que as políticas econômicas devem convergir para um objetivo comum de estimular a economia – e não apenas reforçar práticas que só beneficiam o mercado. Para o economista, “os tecnocratas só olham as finanças públicas, o Banco Central só olha o efeito sobre a taxa de inflação. E esse é o meu ponto: a economia deve ser analisada como um sistema complexo, com vários componentes e conflitos”, afirma.

Leia a íntegra da entrevista.

CartaCapital: O senhor avalia que a criação da TLP compromete o papel de fomento do BNDES. Como isso ocorreria?

Fernando Nogueira da Costa: A análise precisa ser feita do ponto de vista da economia como um todo, um sistema complexo, com vários conflitos de interesse. Na iniciativa pública, olha-se o lado das finanças públicas. A equipe econômica faz o diagnóstico de que há um subsídio que pesa para o Tesouro Nacional e ajusta o custo desse empréstimo às taxas de mercado. É visto do ponto de vista estático.

Se você olhar ao longo do tempo, esse subsídio se justifica, porque gera crescimento econômico, portanto aumenta a arrecadação fiscal. O próprio banco gera lucros e dividendos. Ao financiar empresas que passarão a produzir e, com isso, pagar impostos, há uma sequência, um processo dinâmico, que compensa esse subsídio.

Principalmente numa época de crise, reforça-se o crescimento da economia. Então não é uma conta de contador, é uma conta de economista, que precisa levar em conta a dinâmica e o cenário futuro, não só o hoje comparando duas partes de maneira estática.

CC: O crédito ao investimento terá uma taxa de mercado. Como avalia as repercussões dessa mudança?

FNC: Para analisar a TLP é preciso ver as outras pontas: Tesouro Nacional, pelo lado das finanças públicas, e Banco Central, que vai pelo lado do impacto na política monetária. Para essa duas pontas, o impacto recessivo de uma política de juros será muito maior.

Do ponto da vista da sociedade, é o contrário: a recessão nos levou a 14 milhões de desempregados. Então a taxa de juros do Banco Central foi uma overdose. Crédito direcionado subsidiado por parte dos bancos públicos compensa essa grande depressão provocada pelo Banco Central.

É um mecanismo excessivo, mas historicamente o País funciona desse jeito. Um controle de política monetária que aumenta a taxa de juros, um absurdo que se contrapõe ao crédito subsidiado direcionado para alguns setores prioritários. E isso funcionou bem e levou o Brasil a ser a sétima maior economia do mundo.

“Se a pergunta for: você é a favor de pagar tarifas de energia elétrica mais cara porque os juros irão deixar de ser subsidiados? Ninguém vai querer.”

CC: Para o BNDES, qual é o problema da nova taxa?
FNC: O BNDES dá crédito para um investimento com longo prazo de maturação. Para fazer um plano de negócios, a taxa de juros não pode ser volátil, não pode ser taxa de mercado futuro. Porque entre o momento que se toma a decisão e o projeto se efetivar, é muito tempo.

CC: Na prática, como a TLP atuará nos financiamentos?

FNC: Um exemplo concreto, Belo Monte. Um investimento extremamente complexo e de longo prazo de maturação, no mínimo oito anos. Aí tem que fazer todo o projeto, o plano de negócios e digamos que haja um salto na taxa de juros entre a tomada de decisão do negócio e a concretização do financiamento.

De cara ele já sai mais caro. É normal que só a aprovação leve seis meses. E com o seguinte problema: o prefixado pode ser maior do que aquele do momento em que se tomou a decisão. Daí em diante o IPCA pode subir. Na prática, indexa-se a taxa de juros que vai ser empregada no financiamento de um empreendimento de longo prazo.

Vamos fazer uma simulação no exemplo de Belo Monte: digamos que tenha sido feito com TLP e não com TJLP. O maior financiamento do BNDES num edital foi Belo Monte, 80% do projeto é com recurso do BNDES. Aí vai entrar em operação, o investimento maturou… Se tivesse sido com TLP, a taxa de inflação subiu para mais de 10% em 2015. E quem pagaria isso? Vai ser repassado para os clientes. E aí tem o meu ponto: energia é um insumo universal. Se você tem um custo indexado que vai ser repassado para o consumidor, a inflação do passado vai para o futuro. Quando começa o fornecimento da energia haverá essa conta para pagar.

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Quando se toma uma decisão como mudar a taxa de juros do BNDES a toque de caixa, com problema de legitimidade do governo, um Congresso subserviente, fica tudo questionável. Se alguém perguntar: você é a favor que se tire o subsídio do setor industrial? A grande maioria vai falar que sim, por que privilégio? Por que o pato amarelo da Fiesp não vai pagar o pato? Todo mundo é a favor. Agora, se a pergunta for: você é a favor de pagar tarifas de energia elétrica mais cara porque os juros irão deixar de ser subsidiados? Ninguém vai querer.

Os tecnocratas só olham as finanças públicas, o Banco Central só olha o efeito sobre a taxa de inflação. E esse é o meu ponto: a economia deve ser analisada como um sistema complexo, com vários componentes e conflitos. Então não se pode fazer uma coisa que repercute no futuro, com oportunismo político. O momento é inadequado.

CC: Quem defende a TLP argumenta que os recursos subsidiados do BNDES foram usados de maneira equivocada, já que beneficiaram grandes empresas que teriam condições de captar no mercado. Criticam também a política das Campeãs Nacionais. Qual a sua visão sobre isso?

FNC: É legítima a discussão sobre o tamanho dos subsídios do crédito, sobre programas específicos do BNDES. Políticas públicas podem ser corrigidas. É legítima também a crítica sobre fomentar fusões e aquisições de grupos econômicos brasileiros para aumentar a competitividade no exterior.

O contra-argumento é o seguinte: o complexo carnes não ajuda bastante a balança comercial brasileira? Então fica uma visão muito parcial de sempre falar do ponto de vista das finanças públicas e, novamente, não ver a complexidade.

“Se colocar gente do mercado [no Banco Central], a única coisa que eles sabem fazer é isso: abusar da taxa de juros, aumentar a riqueza financeira, atender os clientes e a sociedade paga com o desemprego.”

Outro exemplo que vemos hoje o resultado: muitos criticaram os empréstimos para a Petrobras, e ainda houve todas as denúncias de corrupção… Fato concreto é que o Brasil se tornou um dos maiores produtores de petróleo da América Latina. A Venezuela deixou de investir, o México deixou de investir e o Brasil investiu.

A balança comercial desse ano está muito boa porque as importações caíram por causa da recessão, os preços das commodities se recuperaram, os demais países voltaram a crescer, o que não acontecia desde 2007. E o Brasil está aproveitando esse boom que não poderia aproveitar se não tivesse havido uma política para essas empresas, tanto para os grandes grupos exportadores, quanto para a Petrobras.

Quem está puxando as exportações é soja, minério de ferro, petróleo e indústria automobilística, todos apoiados pelo BNDES.

Novamente: o ponto é ver todo o sistema, senão ficamos na visão parcial, ou só do ponto de vista das finanças públicas. Porque aí vêm os tecnocratas do Ministério da Fazenda: “eu cumpri a minha tarefa, ajustei as contas públicas”. Mas e o ônus social? Vem o Banco Central e diz, “eu baixei a inflação”. Mas e o ônus social?

CC: Então falta coordenação entre os vários braços que compõem a política econômica?

FNC: Exatamente. Essa é a minha crítica principal. Os instrumentos de política econômica não podem ser descoordenados. Política fiscal, política cambial, política de juros e crédito, tudo tem que ser coordenado entre si. Defendo economistas desenvolvimentistas na direção do Banco Central. Porque se colocar gente do mercado, a única coisa que eles sabem fazer é isso: abusar da taxa de juros, aumentar a riqueza financeira, atender os clientes e a sociedade paga com o desemprego.

Se fosse assim, tudo bem, a gente mantém a TLP. Se há coordenação, a Selic num nível civilizado, é ela que vai convergir para um ponto mais baixo, em vez de puxar a TJLP para um ponto mais alto.

CC: Então podemos dizer que a TLP não é o problema e sim a vinculação com a Selic?

FNC: Não se pode deixar o Banco Central sob a direção neoliberal fazer política desenvolvimentista. A questão de fundo é essa. Se houver uma política para crescimento econômico do país coloque na direção do Banco Central gente desenvolvimentista. Senão caímos nesse debate de banco público versus Banco Central e isso é um falso debate, é preciso uma coordenação entre os dois.

CC: Estamos numa crise e por enquanto pouca coisa diz que sairemos dela logo. Como uma política como essa, que muda o preço dos recursos para o investimento produtivo, pode atrasar ainda mais a recuperação?

FNC: Não é possível, por exemplo, criticar que a retomada seja feita pelo aumento do consumo. Se existe capacidade ociosa, é preciso preencher a capacidade produtiva. Como vai fazer investimento se há capacidade ociosa e não tem expectativa de venda? Então a saída é o consumo mesmo.

CC: E há outros caminhos de política pública para estimular a economia além do crédito às empresas?

FNC: Acho fundamental retomar o financiamento habitacional. Outro fracasso do atual governo é que o Minha Casa, Minha Vida foi para o buraco, deixou de dar subsídio, coisa que tem um retorno imenso. Retorno tanto em termos de emprego, por causa da construção, e também diretamente no orçamento das famílias, até abrindo espaço para o consumo.

Fala-se muito do endividamento, mas as famílias quando se endividam com o financiamento da casa própria estão na verdade substituindo o aluguel, não estão elevando o comprometimento de compra. Muitas vezes pagam até menos do que no aluguel e sobra mais para o consumo. É preciso ver o fluxo, o gasto é mensal, não tem a ver com o tamanho da dívida. A inadimplência é baixíssima. É fundamental retomar uma política habitacional ativa.

Cerca de 95% do déficit habitacional é das pessoas com renda de até um salário mínimo. Mas entre as que têm até três salários mínimos o déficit é de 92%. Essa faixa não tem como acessar o financiamento em condições de mercado. Tem coisas que não tem jeito: o Tesouro Nacional tem que dar subsídio.

“No Brasil os neoliberais querem falar em mercado de capitais, um modelo semelhante ao americano. A nossa economia é de endividamento bancário, não é economia de mercado de capitais.”

CC: Então estamos falando de subsídios tanto para empresas quanto para as pessoas físicas?

FNC: Sim, senão o crescimento não retoma. A gente está vivendo um círculo vicioso, porque o governo corta gastos, aumenta a depressão, cai a renda e arrecada menos. Aí tem que rever o déficit fiscal. Em depressão não se usa ajuste fiscal. Tem que gastar, puxar junto o gasto privado para, depois que retomar o crescimento, fazer o ajuste.

Senão é “a outra volta do parafuso”, que é o nome de um livro clássico de histórias de horror (A outra volta do parafuso, Henry James), que é aprofundar um círculo vicioso.

CC: Voltando à questão dos bancos de fomento, como o Brasil se insere na experiência internacional?

FNC: Na Índia, na China ou na Rússia a participação dos bancos públicos é muito maior que no Brasil. Nos grandes países emergentes, o investimento vem dos bancos públicos. Na China tem a seguinte peculiaridade: os bancos captam oferecendo risco soberano, como se fosse dívida pública do Tesouro Nacional.

É como se o BNDES emitisse um título com risco soberano, o BNDES capta e aí sim viraria um banco público semelhante ao chinês, que capta e faz financiamento para o mercado, não quebra nunca. De onde veio esse milagre chinês? Do banco público.

No Brasil os neoliberais querem falar em mercado de capitais, um modelo semelhante ao americano. A nossa economia é de endividamento bancário, não é economia de mercado de capitais.

Há uma concentração de riqueza brutal que não sustenta o mercado acionário. Toda a classe média e os ricos no Brasil somam 10,5 milhões de pessoas, 6,5 milhões na classe média baixa, com riqueza per capita média de 50 mil reais. Aí tem a classe média alta, 3,5 milhões de pessoas, com 170 mil reais de riqueza per capita média. Aí tem os ricaços: 7,5 milhões de reais médios para 115 mil pessoas. Dá para imaginar fazer um mercado de capitais só para 115 mil pessoas?

Estudam na cartilha norte-americana, mas vivemos em um outro contexto, outra sociedade.


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