Por Wagner Romão*
(IFCH/Unicamp e ADunicamp)
Desde suas origens, a universidade sempre manteve algum nível de tensão com o poder político. Isso advém da centralidade da construção autônoma da ciência em seu projeto, livre de pressões externas de toda ordem. No entanto, a universidade dependente do orçamento público sempre precisará de aliados, em um mundo sempre imerso em disputas por projetos políticos concorrentes.
Com foco no contexto paulista, mas tendo a realidade brasileira no horizonte, neste artigo[1] busco observar momentos das relações de tensão entre a universidade pública brasileira e o poder político.
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Desde sua fundação em 1934, após a derrota paulista na chamada Revolução Constitucionalista, a Universidade de São Paulo (USP) se equilibrava em uma relação tensa com o poder político. A nomeação de Armando Salles de Oliveira – paulista e civil – como Interventor no Estado de São Paulo viabilizou o pacto do grupo liberal paulista com o governo autoritário de Vargas, onde estava prevista a criação da nova universidade.
A incipiente experiência universitária em São Paulo[2] era reservada a uma minoria ilustrada em um país de analfabetos. Os membros das classes populares que chegavam à universidade eram exceções. Os raríssimos professores “de cátedra” advindos das classes populares, como Florestan Fernandes, eram carregados a tiracolo pelos liberais, como troféus a comprovar o valor “incontestável” do mérito sobre todas as outras formas de mensuração do talento acadêmico e científico.
A USP se formou pela junção de três escolas já constituídas – as Faculdades de Medicina, Direito e a Escola Politécnica – com a inovadora Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL). Em uma situação de total dependência orçamentária das decisões do governador, inclusive sobre a contratação de docentes e funcionários, a recém-criada FFCL foi sempre mais frágil. Quem reclamasse demais da falta de recursos era perseguido. Isso ocorreu, por exemplo, no governo de Jânio Quadros (1955-59), com docentes como Mário Schemberg, João Cruz Costa e o então diretor da FFCL, Eurípedes Simões de Paula, sob o beneplácito da reitoria e do Conselho Universitário da USP.[3]
Esta situação não impediu que, nos anos 1960, a universidade se posicionasse “numa era de revolução social”, parafraseando aqui a obra de Florestan sobre os desafios da sociologia no período. Não por acaso, aquele foi o momento da criação da Fapesp, numa articulação política entre o governo Carvalho Pinto e o campo progressista e modernizante na USP, liderado pelo reitor Ulhôa Cintra.
Carvalho Pinto se aproxima da universidade por meio da elaboração do Plano de Ação do governo. Plínio de Arruda Sampaio, que fora sub-chefe da Casa Civil de Carvalho Pinto e coordenador do Plano me disse, em entrevista para minha pesquisa de mestrado: “nós tínhamos grande orgulho de que a universidade estivesse conosco, nós fazíamos certa propaganda disso, nós capitalizávamos politicamente em cima do apoio da universidade”. E, com a Fapesp, a universidade também se fortalecia.
O acesso à universidade, no entanto, mantinha-se restrito. Naqueles anos explodiu o movimento dos “excedentes”, vestibulandos que obtinham média suficiente para o ingresso nas universidades mas para os quais não havia vagas. Em 1960, os excedentes eram 29 mil em todo o sistema público brasileiro. Em 1969, eram 162 mil.[4]
Aquela USP ainda elitizada se radicalizou nos anos 1960 e, junto a outras universidades públicas, sofreu muito com a ditadura militar. Docentes e estudantes perseguidos, aposentadorias compulsórias,“delações premiadas” em que se eliminavam eventuais concorrentes em concursos e nomeações. Na Unicamp, esta onda foi bem menor. Embora fosse apoiador do regime, o reitor Zeferino Vaz trouxe à Unicamp pesquisadores autodeclarados de esquerda e perseguidos pela ditadura brasileira e de outros países da América do Sul.
O conflito e as contradições se davam entre uma universidade que intentava fortalecer-se para atuar na modernização científica e tecnológica do país, e um governo autoritário que, ao mesmo tempo em que a mantinha a universidade sob um controle ideológico nefasto, via na ciência um elemento estratégico da construção de sua agenda desenvolvimentista.
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Permitam-me, agora, um salto de três décadas. Após um período de expansão do ensino superior baseado quase exclusivamente na iniciativa privada,[5] a década de 2000 se inicia com uma política de expansão das estaduais paulistas, a partir da iniciativa do Cruesp e do governo Alckmin, e das universidades federais com o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – Reuni, no governo Lula. As matrículas nas universidades públicas foram de cerca de 500 mil em 1980 para 2 milhões em 2019.
No âmbito federal e em outros estados, a esta política expansionista se somaram as ações afirmativas e as políticas de cotas para estudantes de escolas públicas e para pessoas pretas, pardas e indígenas. Nas universidades estaduais paulistas, as cotas demoraram a chegar. A Unicamp, inicia suas políticas afirmativas em 2005, com um sistema de bonificação, o Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social – PAAIS, e apenas confirma cotas em novembro de 2017, após intensa mobilização estudantil e da comunidade universitária pró-cotas, que passa a valer para o vestibular de 2019.
Neste processo, a universidade desperta para outra dimensão da luta pela democracia. A duras penas, ela se viu compelida a olhar para dentro de si mesma. Deixou de defender-se de sua inação sob o argumento que iniquidades sociais deveriam ser combatidas em suas origens e não em seus efeitos. A expansão e as cotas mudaram as universidades e as tornaram partícipes da construção de outro projeto de nação, ativo no combate às desigualdades no país.
As mudanças têm efeitos importantes para estancar a concentração de conhecimento e a exclusão social. Porém, sabemos que o racismo e o preconceito permanecem atuando e dificultam a ação reparadora. Além disso, depois de um período de relativa conjugação de projetos políticos, a universidade se depara com um novo momento de confronto com o poder político.
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A autonomia universitária é uma peleja em aberto no sistema federal. Sem garantia de recursos não há autonomia de fato e seu orçamento vem decaindo desde 2015. No sistema paulista, o Decreto 29.598/89 gerou garantias e novas tradições que colocaram deram certo resguardo a nossas universidades. Mas as pressões políticas seguem existindo.
O clima com relação às universidades vinha se deteriorando para além da questão orçamentária desde pelo menos 2017, quando abusos flagrantes foram cometidos contra a imagem das universidades públicas e contra autoridades universitárias. Casos exemplares foram as ações da Polícia Federal contra a UFSC – que levou ao suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo – e contra a UFMG na operação Esperança Equilibrista, um ataque direto à criação do Memorial da Anistia Política naquela universidade.
Na campanha eleitoral de 2018, pelo menos 17 universidades públicas foram alvo de ações da Justiça Eleitoral, do Ministério Público Eleitoral e da Polícia Federal. A acusação é de que nestas universidades estaria sendo feita propaganda irregular a favor de Fernando Haddad, candidato à presidência da República pelo PT.
Com a vitória de Bolsonaro, o Ministério da Educação se tornou uma base de ataque às universidades e à educação livre em geral. Depois do episódio Vélez Rodrígues, Abraham Weitraub ameaçou cortar recursos de universidades que seriam palcos de “balbúrdia”. O projeto Future-se e a verborragia do ministro eram parte de uma estratégia de elevar sempre a tensão com a comunidade universitária. Vieram as não nomeações do primeiro colocado na lista tríplice em pelo menos 19 instituições federais de ensino superior e tantos outros ataques que são parte estratégica do projeto de poder da extrema-direita.
Na Assembleia Legislativa de São Paulo, 2019 foi o ano de uma obtusa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que questionava a gestão das universidades estaduais. A CPI agregou propostas de ataque direto à autonomia universitária, sugestões de mais abertura ao mercado e de cobranças de mensalidades, ameaças de diligências nas reitorias. Entre os deputados predominou uma posição ofensiva, especialmente entre aqueles que se identificavam com o bolsonarismo e/ou com uma visão de mundo neoliberal.
Gradativamente, no entanto, a resistência da comunidade universitária se fez mais forte, ganhando terreno junto à opinião pública. O relatório final foi morno, já em um reposicionamento da bancada aliada ao governo do estado, talvez em um contraponto antecipado ao bolsonarismo que se concretizaria em 2020 em meio ao reconhecimento da centralidade da ciência no combate à Covid-19. Mesmo assim, em plena pandemia, o PL 529/20 previa a transferência do superávit financeiro das universidade e da Fapesp ao tesouro estadual e a proposta de Lei Orçamentária Anual de 2021 previa a retenção de até 30% dos recursos da Fapesp. Após forte mobilização da comunidade universitária estes ataques foram refreados.
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A universidade pública brasileira tem hoje uma dupla missão: defender-se dos ataques desferidos contra ela por seus inimigos políticos e, ao mesmo tempo, conectar-se mais intensamente com os atores subalternizados de nossa sociedade, seus novos aliados.
A universidade se tornou alvo da extrema-direita pelas mudanças que nela ocorreram nas últimas duas décadas. E não podemos retroceder nestas mudanças, sob pena de compactuarmos com o projeto político conservador, autoritário e privatista, que permanece vigoroso.
Não há desenvolvimento possível sem a reversão da nossa extrema desigualdade social. Atuar por esta reversão deve ser a missão da ciência e da universidade numa sociedade como a brasileira.
Wagner de Melo Romão* é professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e co-coordenador do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Nepac). Foi presidente da Associação de Docentes da Unicamp (ADunicamp) entre 2018 e 2020.
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1 – Agradeço aos professores Álvaro Bianchi e Roberto do Carmo, diretor e diretor-associado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, pelo convite ao evento “Universidade e Pandemia”, para o qual iniciei estas reflexões. Agradeço também ao convite do professor Peter Schulz para publicá-lo neste espaço.
2 – O sistema universitário paulista era composto à época apenas pela USP e por poucos institutos isolados que em 1975 formariam a Unesp. A Unicamp seria criada em 1966. Entre as Federais, a UFSCar nasceria em 1968, a Unifesp em 1994 – a partir da Escola Paulista de Medicina e com a expansão já no segundo governo Lula, sob os auspícios do Programa Reuni. A UFABC é de 2005.
3 – Conto a perseguição de Jânio Quadros a estes docentes no livro “Sociologia e política acadêmica nos anos 1960: a experiência do Cesit” (2006, Humanitas), fruto de minha dissertação de mestrado.
4 – Braghini, Katya. 2014. A história dos estudantes “excedentes” nos anos 1960: a superlotação das universidades e um “torvelinho de situações improvisadas”. Educar em Revista, p. 123-144.
5 – Em 1998, Fernando Henrique Cardoso cobra das universidades federais a ampliação do número de vagas oferecidas: “um país democrático tem de oferecer a universidade pública, mas é preciso que as universidades também cumpram o papel delas e ampliem as vagas, porque a proporção aluno/professor no Brasil é extremamente baixa”. Ensino superior cresce mais nas particulares, Folha de S. Paulo, 21/07/1998. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff21079830.htm
Publicado originalmente em 24 de março de 2021 no Portal da UNICAMP
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