Em plena pandemia, Funcamp reduz jornada de trabalho e salários de profissionais da saúde no Hospital das Clínicas


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A decisão da Funcamp (Fundação de Desenvolvimento da Unicamp) de, em plena pandemia de Covid-19, realizar cortes de 25% nos salários e nas jornadas de trabalho de médicos, enfermeiros e funcionários técnico-administrativos, muitos deles que atuam na linha de frente no Hospital de Clínicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), tem gerado uma onda de protestos entre seus colegas e entre estudantes da FCM (Faculdade de Ciências Médicas).
“Essa redução de jornadas e salários em plena pandemia é um absurdo. Os profissionais que tiveram seu salário e carga horária reduzidos em 25% são da Faculdade de Medicina e não do hospital, mas como muitos são auxiliares de ensino do ciclo clínico e das residências essa redução acaba impactando, com certeza, o atendimento no HC”, afirma a professora Rosana Onocko Campos, do Departamento de Saúde Coletiva da FCM.
Os cortes começaram a ser feitos no início de maio e atingiram, na área de ensino, profissionais com contratos precarizados em relação aos dos demais docentes. Eles são contratados pela Funcamp pelo regime de CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), ao contrário dos docentes de carreira que têm contratos estáveis e sólidos.
Os cortes têm sido feitos com base na Medida Provisória 936/2020, promulgada em 22 de março pelo Governo Federal, e que autoriza a redução de jornada e salário de trabalhadores, por três meses, no contexto da pandemia.
A Funcamp justificou, no comunicado de aviso dos cortes encaminhado aos profissionais, que o fazia diante da “necessidade de adoção de medidas preventivas para minimizar a cadeia de transmissão, bem como a necessidade de reduzir o risco de contágio da população” e que “projeções feitas pelas autoridades sanitárias estatais acerca da evolução do Coronavírus no Brasil, especialmente no Estado de São Paulo, recomendam a manutenção do isolamento horizontal enquanto perdurar o estado de calamidade pública” .
NA LINHA DE FRENTE
Ocorre que muitos destes profissionais atuam na linha de frente do atendimento aos pacientes no HC. Eles foram contratados para atuar na área de ensino da faculdade, mas, como explica um dos médicos submetidos ao corte: “O ensino em medicina está muito atrelado à assistência, então é natural  que, além das atividades de ensino, a gente faça atividades de assistência à saúde para pacientes”.
De acordo com o profissional, que pediu para ser mantido no anonimato para evitar possíveis represálias , mesmo com a suspensão das aulas da universidade, em março, essas equipes continuaram em pleno trabalho, dentro de suas cargas horárias. “Assim que chegou a pandemia, praticamente não ficamos ociosos em nenhum período. A gente foi diretamente direcionado para as atividades de assistência à Covid-19. Em vários de nossos casos, os períodos semanais que tínhamos que cumprir para atividades de ensino foram totalmente voltados a atividades assistenciais para pacientes com Covid ou sem Covid. Assim que as atividades de ensino foram suspensas, nós automaticamente fomos direcionados a assistência, e isso por iniciativa nossa, é bom que se diga. Nós nos colocamos imediatamente à disposição das estratégias de enfrentamente da Covid-19”, relata.
ÁREAS ESSENCIAIS
O professor Francisco Hideo Aoki, do Departamento de Clínica Médica da faculdade, afirma que muitos dos profissionais de medicina e enfermagem submetidos aos cortes vinham atuando em áreas essenciais de atendimento no Hospital de Clínicas.
“Entre esses vários médicos, estando ou não atuando na atenção à pandemia, todos atuavam de acordo com as necessidades institucionais, auxiliando nas tendas de pré-atendimento da Covid-19, na enfermaria de Covid ou na terapia intensiva. E, neste momento, qualquer força de trabalho faltante faz falta mesmo”.
Em decorrência dos cortes, muitos dos próprios profissionais afetados têm sido chamados para trabalhos extras nos plantões noturnos da UTI do hospital, principalmente para acompanhamento de pacientes com a Covid-19.
A quantidade de contratos que sofreram cortes não foi informada pela Funcamp. A reportagem entrou em contato com o Departamento de Relações Públicas e Imprensa da FCM, para obter o número de afetados e outros detalhes sobre os cortes, mas até o fechamento deste texto as solicitações não foram respondidas.
Sem diálogo, ação da Funcamp provoca indignação e revolta
A maneira como os cortes foram realizados causou indignação e revolta entre os profissionais e docentes. O anúncio foi feito individualmente, por documento encaminhado pela Funcamp para que os profissionais simplesmente tomassem ciência, sem nenhum comunicado ou negociação anterior.
“Médicos que nos procuraram reclamaram de não terem sido sequer chamados para conversar e, por isso, foram tomados de tanta surpresa ao receberam o documento da Funcamp. O que mais os chateou foi a falta de zelo, de cuidado em tratar desse assunto da maneira muito desrespeitosa como foi tratado. Estamos falando de profissionais que atuam na graduação, atuam na atenção a pacientes, inclusive nos atendimentos específicos da Covid-19. Eles até entenderiam, mas da forma como foi feito, a interpretação é de que são tratados como meros números na instituição”, relata Aoki.
O professor Gustavo Tenório Cunha, do departamento de Saúde Coletiva da faculdade e diretor da ADunicamp (Associação de Docentes da Unicamp), lembra que a maioria desses profissionais são médicos jovens, que fazem pós-gradução, mestrado ou doutorado, mas todos eles “fortemente vocacionados para atividade docente” e para o trabalho em hospitais públicos.
CAPACIDADE RECONHECIDA
“São profissionais que têm uma capacidade reconhecida, geralmente pessoas com vocação docente e trajetória de mestrado e doutorado. São profissionais que gostam do que fazem, são muito respeitados pelos professores, pois foram alunos e poderiam estar em qualquer outro lugar, mas optaram por estar aqui”, afirma Gustavo. O professor relata que eles são muito queridos pelos alunos, que sempre os homenageiam por essas particularidades.
O Centro Acadêmico Adolf Lutz, que representa os alunos da FCM da Unicamp, acaba de lançar um vídeo com dezenas de alunos protestando contra as reduções de jornada e salários. “Nós alunos da Faculdade de Ciências Médicas somos contra essa redução. (…) Queremos viver e acreditar em um país onde a saúde e educação sejam vistos não como uma despesa, mas como um investimento para o bem da população”, dizem no vídeo.
‘BALDE DE ÁGUA FRIA’
Um dos médicos que falou para a reportagem, na condição de anonimato, afirma que a forma como a decisão foi tomada começa a fazer muitos de seus colegas repensarem a trajetória que haviam programado para o futuro de suas vidas profissionais.
“Para nós, o principal componente da indignação não é tanto a redução salarial em si, mas como o processo se deu: sem diálogo, sem uma construção coletiva. Os nossos salários são extremamente baixos, se a gente for comparar com aqueles que os municípios, por exemplo, pagam para concursados. O interesse nosso, da maioria dos colegas que estão nestes contratos, é estar na universidade, é ter a oportunidade futura de participar de concurso, de ter  uma perspectiva de docência”, afirma.
De acordo com o médico, é justamente por pensarem nessa perspectiva de futuro, que a grande maioria deles se obriga à dedicação redobrada no trabalho e nos estudos. “E nos dedicamos porque temos vontade, gostamos das atividades de ensino, e almejamos também a carreira docente”, diz.
Então, para ele, a maneira como a Universidade agiu “foi um balde de água fria” nas perspectivas de futuro. “Mostrou que não temos nenhum papel, somos apenas um número no organograma da Universidade”, avalia.
PERDAS IRREPARÁVEIS
A professora Rosana Onocko Campos vai além. Ela diz que alguns “ótimos profissionais” que conversaram com ela após os cortes já decidiram sair e que outros já refazem seus planos de futuro.
“Esse é um dano irreparável. Estamos falando de profissionais com muitos anos de formação e aprimoramento. Não será fácil repor essa força de trabalho e isso é muito ruim para a instituição”, avalia.
De acordo com a professora, a forma com a Funcamp agiu trouxe também “dano na moral irreparável” para as equipes que atuam na linha de frente do Hospital de Clínicas e da faculdade de medicina . “E isso é o contrário do que estamos precisando neste momento. O que precisamos agora é de equipes com ânimo e boa disposição para enfrentar a epidemia”.

MP 936 e sindicato DE CIMA PARA BAIXO

A MP (Medida Provisória) 936/2020, decretada pelo Governo Federal em 22 de março, permite a redução de jornada de trabalho e de salários, em diversas hipóteses.
“No caso da redução de 25%, ela pode se dar apenas mediante acordo. O acordo pode ser individual, firmado entre a empresa e o empregado, ou coletivo, firmado entre a empresa e o sindicato da categoria profissional”, esclarece o advogado Nilo Beiro, da Assessoria Jurídica da ADunicamp.
No caso das equipes de saúde da faculdade de medicina , o acordo foi firmado pelo sindicato, mas isso revela mais uma importante fragilidade do contrato desses profissionais. Eles são filiados a um sindicato de autônomos, que representa um grande número de categorias, como revela o próprio nome da entidade: Seacc (Sindicato dos Empregados de Agentes Autônomos do Comércio e em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Empresas de Serviços Contábeis de Campinas e Região).
No documento de redução de salário e jornadas encaminhado aos profissionais, a Funcamp simplesmente relatou que a medida havia sido tomada a partir de “acordo coletivo de trabalho” firmado com o sindicato.
O acordo foi firmado no âmbito de uma negociação ampla com empresas e profissionais de diferentes áreas. “O fato é que trata-se de um sindicato que não não atua com as especificidades dos tralhadores da saúde”, diz um médico que falou para a reportagem, na condição de anonimato.

Contratos revelam precarização das relações de trabalho

A ADunicamp questiona o modelo dos contratos realizados pela Funcamp e afirma que eles apontam uma precarização das condições de trabalho da Universidade. “Mas fique claro que somos contra os contratos, não contra os profissionais. Defendemos que sejam abertos concursos para preencher as vagas necessárias e que estes profissionais tenham toda a segurança trabalhista dos demais docentes”, afirma o professor Paulo César Centoducatte (IC), diretor da entidade.
O presidente da ADunicamp, professor Wagner Romão (IFCH), avalia que os contratos indicam um avanço na terceirização do ensino na Universidade. “Infelizmente a Funcamp tem atuado como suporte para um processo de terceirização cada vez mais intenso na Unicamp. Neste momento de aguda crise o que se espera da Funcamp, da administração central e das direções da área da saúde é, no mínimo, diálogo. A comunidade universitária e as pessoas que estão sendo atingidas por estas medidas têm que ser respeitadas. Não é possível que a Funcamp decida sobre este tema sem que haja debate interno sobre seus impactos na docência e no atendimento à comunidade e também sobre eventuais alternativas”, afirma Romão.
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