Por Marcio Moretto Ribeiro*
A marca mais evidente do nosso tempo, que traduzo como seu diagnóstico central, é a polarização política. Há dez anos me dedico a estudar esse fenômeno e os dados empíricos mostram o que me parece um arco claro. Ideias progressistas avançaram lenta e globalmente, seguidas de uma reação conservadora abrupta, quase como uma contraofensiva. No Brasil, o ponto de virada foi junho de 2013. À época, analistas como Marcos Nobre viram nos protestos o fim do imobilismo do arranjo “PMDBista” da redemocratização e apostaram em uma polarização saudável de opiniões. O que se consolidou, porém, foi uma polarização afetiva em que divergências políticas se alinharam a identidades sociais e morais, convertendo adversários em inimigos.
Nesse contexto, progressistas e conservadores se veem como torcidas rivais, mobilizando afetos de repulsa e solidariedade interna. Outro efeito, menos considerado, é interno: diferenças no interior de cada pólo passa a soar como traição, e o custo emocional de divergir torna-se insuportável. Identidades políticas complexas se comprimem em hiperidentidades homogêneas, forjadas mais pela emoção da oposição do que pelo debate interno. Em vez de paixões plurais, capazes de sustentar agendas diversas, prevalece uma afetividade binária que reforça o antagonismo e estreita o espaço para o dissenso legítimo.
Nesse ponto vale recuperar a contribuição de Chantal Mouffe em The Democratic Paradox, escrito no contexto europeu dos anos 1990, quando prevalecia o discurso da “terceira via” e da superação das ideologias. A preocupação da autora não era a polarização afetiva atual, mas o risco do esvaziamento da política pela busca de consensos. Ela critica tanto o modelo agregativo, que reduz a democracia à soma de interesses individuais, quanto o modelo deliberativo, em que autores como Rawls e Habermas apostam na possibilidade de consensos racionais entre cidadãos. Ela argumento que em ambos os casos, o conflito constitutivo da política é apagado, quando justamente deveria ser reconhecido como estrutural.
A partir dessa crítica, Mouffe retoma Carl Schmitt e sua tese de que liberalismo e democracia são lógicas incompatíveis: a primeira baseada em direitos individuais e limites ao Estado; a segunda, na soberania popular e na igualdade. Para Mouffe, essa contradição não destrói a democracia liberal, mas constitui o que ela chama de paradoxo democrático: uma articulação sempre instável entre duas tradições inconciliáveis. É dessa instabilidade que surge sua proposta de pluralismo agonístico, em que conflitos não são eliminados, mas transformados. Em vez de antagonismo, no qual o outro é inimigo a ser eliminado, o que se deve instituir é o agonismo, no qual o adversário é reconhecido como legítimo, disputando intensamente sem ser deslegitimado.
Se acompanharmos essa linha de raciocínio, é possível ver como o pluralismo interno aos polos, no sentido formulado por Mouffe, pode funcionar paradoxalmente como um antídoto contra a polarização afetiva. A formação de hiperidentidades homogêneas é justamente o que alimenta o antagonismo, pois transforma adversários em inimigos e elimina a possibilidade de diálogo. Ao contrário, quando progressistas e conservadores preservam sua diversidade interna – permitindo a circulação de vozes dissonantes, contradições e alianças parciais – abre-se espaço para que surjam pontes entre os polos. Em vez de um embate entre blocos monolíticos, o que se produz é uma multiplicidade de articulações coletivas agônicas, nas quais diferentes grupos podem se reconhecer como adversários legítimos e disputar sentidos comuns sem se reduzir à lógica da guerra cultural.
Para exemplificar, podemos imaginar um sindicato de docentes que reúna ao mesmo tempo professores ligados a movimentos feministas e professores evangélicos. Em uma lógica de hiperidentidade, a pressão seria para que todos se alinhassem integralmente a uma pauta progressista ou conservadora, sufocando divergências. Mas, se o sindicato mantém viva a pluralidade interna, ele pode ser um espaço em que feministas e evangélicos se enfrentem em certos temas, mas também cooperem em reivindicações comuns, como carreira, salários ou condições de trabalho. Essa diferença impede que ele se torne apenas um “braço” de um dos polos e, ao mesmo tempo, abre pontes possíveis: por meio dos docentes evangélicos, com setores conservadores; por meio das docentes feministas, com setores progressistas. O mesmo pode ocorrer com outros coletivos. Ao admitir uma distância afetiva entre dissidências internas, esses grupos preservam sua pluralidade e resistem à tentação de se transformar em hiperidentidades homogêneas. Essa separação não fragiliza a luta, mas a fortalece, porque permite múltiplas articulações: ora em confronto interno, ora em alianças externas inesperadas. Em vez de se fecharem em blocos rígidos, tornam-se espaços de mediação e tradução, onde diferenças podem ser reconhecidas e disputadas sem que nenhuma pretenda absorver a outra. É essa convivência agonística que cria condições para uma democracia mais ampla e menos refém da lógica binária da guerra cultural.
A lição central desse percurso é a importância de evitar a hegemonização. Quando uma instituição ou movimento assume para si a tarefa de organizar todas as demais lutas sob a sua lógica, inevitavelmente apaga a pluralidade interna e reabre o caminho do antagonismo. Certas tradições marxistas já incorreram nesse erro ao tentar subordinar feministas, negros ou ambientalistas à luta de classes, por exemplo. A vitalidade democrática, ao contrário, depende de que cada grupo seja fiel à sua pauta específica e resista à tentação de se fundir em uma hiperidentidade polarizante. Evitar a hegemonização não significa recusar alianças, mas garanti-las em chave agonística, em que a diferença é preservada e se torna fonte de força coletiva, e não de fragilidade.
Ao reconhecer e preservar diferenças dentro de cada campo, agonismo interno, abre-se espaço para múltiplas articulações que evitam a formação de blocos homogêneos. Essa pluralidade interna não apenas fortalece cada instituição ao impedir sua hegemonização, mas também cria pontes inesperadas entre campos opostos. Quando progressistas e conservadores se encontram em espaços onde a diversidade é aceita, o inimigo pode ser reconfigurado como adversário legítimo. O que parecia um confronto inevitavelmente antagonista pode, assim, ser transformado em agonismo democrático, no qual as paixões não desaparecem, mas são canalizadas para disputas produtivas que mantêm viva a democracia.
Marcio Moretto Ribeiro é professor da USP, pesquisador do Cebrap e coordenador o Monitor do Debate Político.
Publicado originalmente em: https://marciomorettoribeiro.substack.com/p/polarizacao-afetiva-e-pluralismo
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Divulgação realizada por solicitação da professora Silvia Gatti (IB), na condição de sindicalizada à ADunicamp. As opiniões expressas nos textos assinados são de total responsabilidade do(a)s autore(a)s e não refletem necessariamente a posição oficial da ADunicamp, nem de qualquer uma de suas instâncias (Assembleia Geral, Conselho de Representantes e Diretoria).
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