Reforma Administrativa em debate: um alerta para impactos sobre carreira, autonomia universitária e serviço público


A proposta de Reforma Administrativa em tramitação no Congresso Nacional não representa um avanço rumo à “modernização e qualidade” do serviço público, como defendem seus apoiadores. Ao contrário, tende a achatar carreiras, reduzir salários e eliminar benefícios que valorizam profissionais comprometidos com o atendimento à sociedade. Seus impactos serão especialmente graves para as universidades públicas, ameaçando sua capacidade de oferecer ensino, pesquisa e serviços de excelência.

Essas foram algumas das avaliações apresentadas pela advogada Camilla Louise Galdino Cândido e pelo advogado Matheus Cunha Girelli, da LBS Advogadas e Advogados, em reunião aberta promovida pela ADunicamp e pelo STU, nesta quarta-feira, 29 de outubro.

Asssita a reunião no player abaixo ou acesse aqui

Na análise Camilla e Matheus, a Reforma Administrativa propõe reorganizar profundamente o vínculo entre Estado e servidores(as), com redução de direitos, precarização dos vínculos trabalhistas, redução radical de concursos e a centralização de todas as decisões na União.

A centralização na União, retira dos demais entes federativos, como municípios e Estados, o poder de definir seus quadros funcionais, planos de carreira e reajustes salariais. E terá efeitos diretos na qualidade das políticas públicas, ao ignorar assimetrias regionais e institucionais, com risco de padronização inadequada. E pode, a partir desta padronização nacional, colocar também em risco o alcance da autonomia universitária.

“A reforma é extremamente danosa para o país. Ela vai significar uma piora gigantesca na prestação dos serviços públicos. Portanto, esse é um debate que não se limita à vida funcional do servidor, mas impacta a prestação de serviços à sociedade, sobretudo à população mais vulnerável”, ressaltou a presidenta da ADunicamp, professora Silvia Gatti (IB), que mediou o encontro.

Camilla relatou que as mudança que a atual Reforma Administrativa pretende sedimentar é resultado de um processo que não começou agora. Ela lembrou que, em 1988, a Emenda Constitucional 19, proposta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, instituiu a terceirização no serviço público. “Essa emenda constitucional foi a entrada dos contratos de gestão na administração pública”, apontou a advogada. Depois, vieram as reformas trabalhista e previdenciária de 2017 a 2019.

Em 2023, o governo Bolsonaro tentou implantar uma reforma administrativa que, na avaliação de Camilla tinha um forte viés ideológico e era menos traumática do que a proposta atual, mas não conseguiu. Estava em fim de governo.

As sucessivas mudanças, reduziram cada vez mais a segurança jurídica de servidores(as) e as exigências nas contratações de serviços públicos. Assim, setores do serviço público passaram a poder contratar pelo regime de CLT, e instituições privadas ou ONGs puderam a atuar diretamente na gestão de serviços públicos, mesmo em essenciais como a Saúde.

Agora, apontou Camilla, por trás de uma linguagem de “modernização”, a proposta de reforma administrativa institucionaliza, na questão do trabalho, uma meritocracia competitiva e tecnocrática, deslocando a governança para metas e sistema de bônus (leia abaixo), deslocando a gestão de pessoas para fora dos entes federativos mais imediatos, instituindo vínculos mais frágeis e abrindo margem a terceirizações e contratos temporários.

Um outro eixo importante da proposta de reforma bate na tecla da “extinção de privilégios”. “Podemos sim ter algumas justas extinções de privilégios. Mas o fato é que esse rótulo tem sido utilizado como um chamariz para convencer a sociedade, mas na funciona como cortina de fumaça, pois mantém pendências históricas, como aposentadoria compulsória de magistrados, enquanto corta benefícios legítimos de amplo espectro do funcionalismo”, avaliou.

MERITOCRACIA E BÔNUS

A institucionalização definitiva do conceito de meritocracia, proposta no texto da reforma, vai criar uma competição assimétrica e fratricida em todas as carreiras públicas, avaliaram tanto Camilla como Matheus.

A progressão passaria a depender exclusivamente do cumprimento de metas individuais ou de equipe, aferidas por comissões formadas nos diferentes níveis das instituições. Com o cumprimento adequado das metas, daria direito ao recebimento de um “bônus de resultado” adicionado ao salário, mas que não se incorpora à aposentadoria. E que também poderia ser pago se houver margem orçamentária e, ainda, pode excluir do benefício quem teve qualquer afastamento do local de trabalho, mesmo que tenha sido por motivo de saúde.

O pagamento dos bônus de resultado considera como limite a ser conferido a folha de pagamento do 13º salário do ano anterior, o que torna impossível bonificar toda a equipe bem avaliada. “Isso vai gerar uma corrida fratricida por bônus. Não vai ter orçamento para dar o bônus para todos os que foram bem”, alertou Camilla.

Para Camilla, indispensável questionar profundamente o conceito de meritocracia, que já é alvo de muitos estudos aprofundados: “O que foi acontecendo ao longo do tempo com a institucionalização da meritocracia? Que é o mérito individual de cada um, a posição social que aquela pessoa tem. As elites passaram a investir cada vez mais na educação e no capital reputacional de seus filhos. Então, aquilo que era para ser do talento individual de cada ser humano, passou a ser um marco para a validação das diferenças sociais. Quem está no poder, quem institui as métricas meritocráticas é quem vai decidir quem está no topo e quem está embaixo.”

Tanto Camila quanto Matheus e a professora Silvia lembraram que a crescente instituição da meritocracia nas universidades públicas tem causado avanços não qualitativos, mas quantitativos. Muitas publicações, mas que não chegam aos interesses da sociedade e nem refletem necessariamente os interessem do bem comum da sociedade.

GRANDE LIMITES

A proposta da reforma tira de quem ingressa no serviço público a possibilidade de que suas progressões, sua manutenção como servidor(a) se dará também pelo tempo de trabalho. “O que tentam implementar nessa reforma é essa ideia da meritocracia. E o que vai guiar isso é a concessão do bônus e a extinção também de adicionais por tempo de serviço, como adicionais, licença-prêmio, sexta parte. O principal não é o tempo no serviço público, mas sim o mérito que ele tem junto às sucessivas administrações”, pontuou Matheus.

Na prática, segundo Matheus, a reforma propõe inicialmente um forte impacto na remuneração do servidor, para “tentar enxugar o Estado”. Para isso, cria uma figura nova: a TRU (Tabela Remuneratória Única). “Hoje, existem diversas carreiras no serviço público. Por exemplo, aqui na universidade, temos a carreira MS, que é a carreira docente; a carreira PAEP e assim por diante. Cada uma tem seus níveis de remuneração, atende as peculiaridades de cada carreira. A reforma propõe uma tabela remuneratória única, dividia em 20 níveis.”

O primeiro nível, explicou Matheus, é remunerado com o salário-mínimo. E o nível máximo vai ser o teto de cada ente, que em São Paulo corresponde ao teto do governador. “E a remuneração inicial, isso é importante notar, estaria limitada a 50% do nível máximo da carreira. E o que isso quer dizer? Aqui na Unicamp, por exemplo, o salário inicial de carreira docente é R$ 16.350. O nível máximo do professor titular é R$ 24.309, então o salário do novo ingressante seria de R$ 12 mil, ou seja, uma redução de R$ 4 mil.”

Todas as carreiras do serviço público teriam que se adaptar aos 20 níveis propostos na tabela remuneratória. E como a TRU estaria vinculada diretamente ao Governo Federal, qualquer negociação com os deferentes entes, municípios, Estados ou, no caso das universidades a Reitoria, deixaria de ter sentido. “Toda a remuneração passaria a ser reajustada por iniciativa do governo federal. E isso tem a ver com qual governo vai estar lá, se esse governo tem interesse no serviço público e se ele vai se interessar em editar leis que reajustem esses padrões da tabela única”, alertou Matheus. E, levando na esteira, o enfraquecimento total da atuação sindical.

Outra questão chave, na avaliação de Matheus, é a tecnocratização da gestão pública, com todos os entes obrigados a fazer programas claros de metas, em todos os níveis da administração. E isso vai afetar diretamente também a contratação de pessoal. “Prefeitos e governadores só vão poder fazer concursos públicos, a partir das metas estabelecidas, e se cumprirem essas metas”, relata Matheus. E quem faria o controle desses planos de metas seriam os Tribunais de Contas e a partir de critérios que não estão claros no texto da proposta.

Vários outros pontos da reforma abririam caminho para uma explosão de contratações temporárias, com a invasão de empresas terceirizadas e instituições privada. “Os concursos públicos passariam a ser uma das últimas regras”, reforça Matheus.

O FUTURO

Tanto os participantes da mesa de debates como docentes da plateia, reiteraram que a reforma proposta não é uma agenda de eficiência, mas de ajuste fiscal via compressão de direitos, com alto custo social e risco institucional. Para as universidades, o recado é direto: defender o serviço público e a autonomia acadêmica é defender a própria razão de existir da universidade pública brasileira.

Daí ser indispensável que debates e análises como as apresentadas pela LBS Advogados e Advogadas sejam reforçadas e ampliadas. “Temos que difundir informações qualificadas e análises técnicas, como a da LBS, em conselhos de unidade, colegiados e fóruns estudantis. A consciência dos impactos é fundamental para que articulemos ações junto a parlamentares. Afinal, essa reforma só será barrada a partir de ações políticas. É uma reforma política que tem que ser barrada com ações políticas”, defendeu a professora Silvia Gatti.


0 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *