Com a participação da ADunicamp, evento reuniu docentes, estudantes e ativistas em torno da solidariedade internacional
Na noite de 22 de outubro de 2025, o Salão Nobre da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp recebeu dezenas de pessoas para uma aula pública marcada pela emoção, pela denúncia e pela reafirmação do compromisso ético da universidade com os direitos humanos. Organizado pela Faculdade de Educação, com a participação da ADunicamp, o evento teve como tema o genocídio em curso na Palestina e os desafios da solidariedade internacional em um mundo marcado pelo avanço do neofascismo e do autoritarismo.
A mesa de abertura contou com a presença das professoras Sílvia Gatti (presidenta da ADunicamp), Adriana Nunes Ferreira (representando a Reitoria da Unicamp), Adriana Varani (representando a Direção da Faculdade de Educação) e Reginaldo Alves (diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp – STU). As falas iniciais destacaram o papel da universidade pública como espaço de resistência e de afirmação da vida diante da barbárie.
Em sua intervenção, a professora Sílvia Gatti emocionou o público ao relembrar o processo de amadurecimento da ADunicamp no enfrentamento ao tema palestino. Ela contou que, no início do conflito, a diretoria da associação hesitava em empregar o termo “genocídio”, buscando preservar o diálogo entre as diversas visões do corpo docente. Mas a realidade, afirmou, impôs a necessidade de clareza e coragem.
“A ADunicamp tem uma base plural, composta por professoras e professores de diferentes áreas, pensamentos e origens. Essa diversidade é parte da nossa riqueza, mas também exige de nós responsabilidade. Não podíamos ser neutros. A cautela não pode ser silêncio diante da injustiça”, afirmou.
Segundo Sílvia, o posicionamento público da entidade foi resultado de escuta, diálogo e reflexão coletiva. “Fizemos debates, ouvimos vozes diversas, inclusive um professor judeu e um palestino. Foi um processo respeitoso, mas firme. E chegamos à convicção de que era preciso nomear o que está acontecendo: um genocídio.”
A presidenta da ADunicamp também fez uma homenagem comovente à vereadora Mariana Conti, ex-aluna da Unicamp e participante da Global Sumud Flotilha, destacando sua coragem e compromisso político.
“Temos muito orgulho de você, Mariana. Você leva consigo o que há de melhor na Unicamp — a coragem, a resistência e o compromisso com a justiça. Sua trajetória é motivo de esperança para nós que acreditamos na educação e na solidariedade.”
As professoras Adriana Varani e Adriana Nunes Ferreira ressaltaram a importância da iniciativa da FE, destacando o valor de trazer o tema ao campo da formação docente e reforçando o papel da universidade como agente ativo na defesa dos direitos humanos.
Assista o debate no player abaixo:
Coragem, internacionalismo e resistência
A presença da vereadora Mariana Conti (PSOL) deu ao evento sua dimensão mais simbólica e política. Integrante da Global Sumud Flotilha, ação humanitária internacional organizada por movimentos de solidariedade ao povo palestino, Mariana foi detida em águas internacionais por forças israelenses — e, desde o retorno ao Brasil, vem sendo alvo de uma intensa perseguição política em Campinas, em razão de sua atuação pública em defesa da Palestina e dos direitos humanos.
Durante o debate, ela fez um relato emocionado de sua experiência, descrevendo as horas de tensão e resistência vividas ao lado de ativistas de diversos países.
“A Flotilha foi uma experiência de internacionalismo que nossa geração não conhecia. Estávamos ali para romper o cerco a Gaza, levando ajuda humanitária e a mensagem de que o mundo não pode se calar. Fomos sequestradas, presas, tratadas como criminosas — mas o que Israel teme é a solidariedade. Porque a solidariedade desarma o discurso do ódio.”
Em sua fala, Mariana fez uma conexão direta entre o genocídio palestino e as estruturas globais de dominação e violência.
“O que acontece na Palestina não é um fato isolado. É um projeto de colonização e de racismo moderno, sustentado por um sistema econômico e militar que também oprime as populações negras, indígenas e pobres no Brasil. É o mesmo neofascismo que se espalha pelo mundo, que quer destruir a democracia e as vozes que se levantam pela vida.”
A vereadora ressaltou ainda que a perseguição política que enfrenta em Campinas é parte desse mesmo processo de tentativa de silenciamento.
“As tentativas de criminalização não são apenas contra mim — são contra toda forma de solidariedade. Tentam punir a coragem, calar a compaixão e intimidar quem defende a vida. Mas seguimos firmes. A solidariedade é o que nos mantém de pé.”
Em tom emocionado, Mariana destacou o papel da universidade pública na construção de uma consciência crítica e libertadora.
“A Unicamp foi o lugar onde aprendi que conhecimento e compromisso social não se separam. Tenho orgulho de trazer a bandeira da Unicamp para a Palestina e de voltar aqui para reafirmar que resistir é um ato de amor.”
O papel da universidade diante da barbárie
A professora Heloísa Matos Lins, docente da Faculdade de Educação da Unicamp e pesquisadora do campo da comunicação e dos direitos humanos, abriu a mesa de debate com uma fala contundente sobre o papel da universidade pública diante da barbárie contemporânea. Em sua análise, ela destacou que o genocídio palestino não pode ser visto apenas como um episódio distante ou isolado, mas como expressão de um processo global de desumanização e colapso ético.
“Estamos diante da falência da promessa universal dos direitos humanos”, afirmou. “Os direitos que nasceram do horror da Segunda Guerra foram capturados por uma lógica de poder colonial e neoliberal. Precisamos ressignificar esses direitos a partir das lutas dos povos subalternizados, das mulheres, das populações negras, indígenas e palestinas.”
A professora alertou para a necessidade urgente de um novo letramento em direitos humanos, capaz de formar consciência crítica e sensibilidade ética nas universidades e nas escolas.
“Não basta ensinar sobre direitos humanos — é preciso reaprender a linguagem da humanidade. Quando uma criança palestina é assassinada e o mundo chama isso de ‘conflito’, algo se rompe em nós. O papel da universidade é reconstruir esse vocabulário, nomear o horror e afirmar a vida.”
Heloísa também apontou que a neutralidade, frequentemente usada como argumento de prudência institucional, tem servido como forma de cumplicidade.
“A universidade é plural, mas não pode ser neutra. Diante da barbárie, a neutralidade é escolha — e quem escolhe o silêncio, escolhe o lado do opressor.”
Encerrando sua fala, a docente defendeu uma universidade comprometida com o pensamento crítico, a memória e a ação coletiva. “O conhecimento é sempre um ato político. E a formação docente precisa ser, antes de tudo, uma formação ética. Educar é escolher o lado da vida”, concluiu.
O jornalista Anas Obaid, do Comitê Unicamp Palestina Livre, trouxe um testemunho pessoal e doloroso sobre a experiência de guerra. “Assistir e permanecer calado é uma escolha. E o silêncio, nesses tempos, é o lado do opressor”, disse, dedicando sua fala aos jornalistas palestinos mortos em Gaza.
O professor Ronaldo Alexandrino, mediador do debate, encerrou ressaltando que o ato de ouvir e de se afetar é também uma forma de resistência política. “A escuta é um gesto de coragem e de compromisso com a vida”, sintetizou.
Universidade e humanidade
O evento promovido pela Faculdade de Educação reafirmou o papel da universidade como espaço de formação crítica e compromisso ético com a vida. A participação da ADunicamp contribuiu para fortalecer esse propósito coletivo, somando à iniciativa a voz da entidade docente, historicamente comprometida com a defesa dos direitos humanos, da democracia e da liberdade acadêmica.
Como destacou Sílvia Gatti, a luta da ADunicamp é inseparável da luta por justiça e dignidade. “Posicionar-se diante do genocídio palestino é também afirmar o valor da vida e da educação pública. A solidariedade é uma forma de resistência — e a resistência é o que nos mantém humanos.”
Entre emoção e reflexão, o debate na FE/Unicamp transformou-se em um ato de coragem coletiva. Professores, estudantes e ativistas partilharam a convicção de que a neutralidade, diante da barbárie, é impossível. E de que a universidade segue sendo um dos últimos lugares onde a palavra “humanidade” ainda pode ser dita em voz alta.










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