Por César Minto, professor aposentado da Faculdade de Educação (FE) da USP e Michele Schultz, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP
Há tempos, a elite econômica e a política brasileira têm acossado as universidades públicas de inúmeras maneiras, que são ora mais, ora menos transparentes. Buscamos elencar algumas dessas formas, sem a pretensão de esgotá-las, mas referindo-nos igualmente a algumas de suas possíveis decorrências antissociais, e portanto, nada republicanas.
Embora talvez pouco explícitas para o conjunto da sociedade, é possível identificar intervenções diretas desses setores sociais, dos governos que os representam e de gestões que as adotam, de forma acrítica. São exemplos aquelas que têm a ver com o subfinanciamento e o contingenciamento de recursos para as universidades; a infraestrutura exígua; a inadequação do número de servidoras(es); a não reposição de profissionais que falecem ou se aposentam; a não valorização dessas(es) profissionais; a insuficiência ou, não raro, a inexistência de políticas de assistência estudantil; o uso indiscriminado do ensino a distância; a ocorrência de cursos pagos e de assessorias por meio de fundações privadas “de apoio”; e a inserção do binômio “inovação-empreendedorismo” ao lado do tripé ensino-pesquisa-extensão. Enfim, trata-se da normalização da precariedade como contexto ao qual as universidades públicas têm sido submetidas no País.
Mas o que por certo passa despercebido para a maioria das pessoas é o trabalho ideológico cotidiano que se expressa, por exemplo, no uso de expressões que buscam desqualificar as universidades públicas, as(os) servidoras(es) que lá trabalham como docentes ou funcionárias(os) técnico-administrativas(os), as(os) estudantes que nelas têm sua formação: “torre de marfim”, “antro de esquerdismo”, “beneficiam apenas a elite”, “abarrotadas de estudantes que não se esforçam”, “desperdício de dinheiro público”, “não se preocupam com a formação profissional”, “foco de radicalismo e protesto”, “não interagem com o mercado”, “não cobram de quem pode pagar”, “locais de balbúrdia” e inúmeras outras alegações que, repetidas à exaustão, cumprem o papel de tentar soar como verdades absolutas para parcela significativa da sociedade, estando presentes entre pessoas de diferentes espectros políticos com alinhamentos à lógica neoliberal. Uma tarefa não desprezível.
Comecemos, então, por algumas questões estruturantes às quais também essas universidades têm sido submetidas. A primeira delas diz respeito à financeirização da vida, em que tudo, inclusive os direitos sociais, vira mercadoria, sendo que os instrumentos monetários e o sistema financeiro orientam a lógica de funcionamento da sociedade e, portanto, da universidade.
Decorrente da primeira, a segunda refere-se à primazia da austeridade fiscal imposta pela crença na racionalidade técnica e na neutralidade política, como convém à reprodução da dependência epistêmica e tecnológica. A terceira tem a ver com a assunção generalizada, por parte de sucessivos governos, da premissa de que “Estado e mercado não mais podiam ser vistos como alternativas polares para se transformarem em fatores complementares de coordenação econômica” (Cadernos Mare n° 1 da Reforma do Estado, 1997, p. 11), cuja ideia-força é incorporar/delegar ao mercado parte das funções até então realizadas diretamente pelo Estado. Uma vertente do Estado mínimo.
Cabe lembrar que, do ponto de vista histórico, as universidades públicas são instituições que demandam orçamento público adequado e soberania intelectual ou, usando a expressão consignada no artigo 207 da Constituição Federal de 1988: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Diga-se de passagem, essa concepção tem sido atacada desde então por setores sociais e por intelectuais que sempre defenderam a dualidade “excelência da pesquisa” e “excelência do ensino” em contraposição ao que denominam pejorativamente de “modelo único de universidade que realiza de forma indissociada ensino, pesquisa e extensão”. Essa tensão extrapola a questão semântica e, tendo forte recorte de classe, por óbvio permeia a realidade aqui tratada, tanto em termos gerais quanto em termos das atividades realizadas nas e pelas universidades públicas.
Observemos algumas tendências que foram, ao longo do tempo, se entranhando na vida social, assim como na vida acadêmica. Se a tendência à privatização não é inédita, pois vem de longa data, nos anos 1990, simultaneamente ao avanço de políticas neoliberais (garantidas constitucionalmente, diga-se de passagem), ela realiza um salto qualitativo com a doutrina da Reforma do Estado, cujo tripé privatização, terceirização e publicização passa a materializar um processo progressivo de desresponsabilização do Estado, sobretudo quanto a atividades correspondentes aos direitos sociais.
A ordem geral passou a ser privatizar; o que não puder ser privatizado deve ser terceirizado e, por sua vez, o que não puder ser terceirizado – por exemplo, educação, saúde, equipamentos culturais, entre outras atividades que anteriormente eram providas diretamente pelo Poder Público – passa a ser entregue a organizações não governamentais (Ongs) ditas “sem fins lucrativos”, mas entendidas como constituindo “quase mercados”. E, assim, o Estado é transformado apenas num grande gerente, com razoável questionamento de sua possibilidade de gerenciamento.
Eis que o pulo do gato forjado pelo então ministro Bresser-Pereira durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e Marco Maciel, sob a alegação de se contrapor ao neoliberalismo, toca “corações e mentes” não só de pessoas, mas também de partidos e governos outrora insuspeitos de tal adesão à Reforma do Estado. E o fato de não ter força de lei não impede que, em seguida, essa doutrina tenha seus conteúdos progressivamente positivados em instrumentos legais a partir da Reforma Administrativa (Emenda Constitucional n° 19, 1998) no governo citado.
Assim, a Administração Pública Gerencial vai se consolidando ao longo do tempo, sendo que, apesar de ter havido resistência de parcelas da sociedade, efetivamente não houve contraposição significativa a ponto de impedir tal consolidação. O País passou a ser instado a conviver cada vez mais com privatizações, parcerias público-privadas, terceirizações, contratos de gestão, agências nacionais de pretenso controle das delegações realizadas e assim por diante. Perspectiva essa nada contestada durante os dois primeiros governos de Lula da Silva. Ao contrário, a lógica neoliberal avançou nesses governos, sendo um dos exemplos mais contundentes a reforma da previdência de 2003 (EC n° 41, 2003), com incentivo à adesão à previdência privada. Os impactos dessa reforma ainda não foram totalmente compreendidos, uma vez que muitas(os) daquelas(es) que ingressaram no funcionalismo público após sua instituição ainda não se aposentaram.
Nos anos 2015-16, esse projeto político dá um novo salto qualitativo quando a atenção geral do País estava voltada para o acompanhamento do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Novas mudanças estruturais são forjadas com a aprovação da Emenda Constitucional n° 85, em 2015, que atribuiu à inovação o mesmo status, colocando-a ao lado do binômio ciência e tecnologia nos artigos da Constituição – um verdadeiro acinte conceitual, mas entronização essencial para a iniciativa privada, na medida em que a inovação é, sobretudo, de responsabilidade das empresas. Logo após o impeachment, já no governo de Michel Temer, aprova-se a Emenda Constitucional n° 95, em 2016, que estabeleceu o Novo Regime Fiscal, prevendo um teto para as despesas primárias da União, condicionando os recursos disponíveis à política fiscal pretendida pelo capital fictício vigente no País.
Em seguida, a aprovação da Lei nº 13.243/2016, o Novo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (MLCTI), e do Decreto nº 9.283/2018, que o regulamenta, não deixa dúvidas de que, sob a alegação de “busca de segurança jurídica”, foram regularizadas inúmeras atividades que constituem conflitos de interesse. Entre elas encontram-se, a título de exemplo, que as universidades públicas permitam “a utilização de seus laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações existentes em suas próprias dependências por ICT, empresas ou pessoas físicas voltadas a atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação […] e […] o uso de seu capital intelectual em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação”. (Lei n° 13.243/2016, artigo 4°, incisos II e III). Se tais permissões não configuram conflitos entre interesse público e interesse privado, não sabemos o que poderia configurar.
E cabe lembrar que essa lei alterou dispositivos da Lei nº 8.666/1993 (sobre licitações), da Lei nº 12.772/2012 (sobre carreira docente) e da Lei nº 10.973/2004 (sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo). Ou seja, não foram pouco significativas as mudanças realizadas em momento tão conturbado da política nacional.
O mais impressionante disso tudo é uma certa rendição, inclusive endógena, ao modelo neoliberal que acossa a perspectiva de universidade pública que defendemos. A adesão ao modelo proposto pelo MLCTI é ampla, com envolvimento de servidoras(es) docentes e técnico-administrativas(os) sem a devida crítica ao modelo. A possibilidade de complementações “salariais” por meio do estabelecimento de convênios com empresas – o que destrói a perspectiva da dedicação exclusiva, entre outros efeitos –, o desmonte da política salarial com o pagamento de abonos e o produtivismo acadêmico, resultante da lógica gerencial mencionada, são aspectos que reforçam uma disputa ideológica bastante importante, do nosso ponto de vista.
Portanto, defender a concepção de uma universidade brasileira verdadeiramente pública, com financiamento exclusivamente público, alicerçada nos interesses da sociedade, é uma obrigação daquelas e daqueles que entendem que o modelo neoliberal de gestão do Estado é algo a ser combatido.
Publicado originalmente em: https://jornal.usp.br/artigos/as-universidades-publicas-brasileiras-estao-sendo-acossadas/
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Divulgação realizada por solicitação da professora Silvia Gatti (IB/Unicamp), na condição de sindicalizada à ADunicamp. As opiniões expressas nos textos assinados são de total responsabilidade do(a)s autore(a)s e não refletem necessariamente a posição oficial da ADunicamp, nem de qualquer uma de suas instâncias (Assembleia Geral, Conselho de Representantes e Diretoria).
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