Debate na ADunicamp expõe contradições do arcabouço fiscal e alerta para retrocessos sociais da Reforma Administrativa


A Reforma Administrativa em tramitação no Congresso é uma tentativa radical de desmonte dos serviços públicos, que teria efeitos devastadores no atendimento do conjunto da população brasileira, e resulta de um processo de limitação de ações do Estado, conduzido há décadas, no Brasil e no mundo, por políticas neoliberais que representam claros interesses econômicos e corporativos

Essas são algumas da conclusões de um novo debate sobre a Reforma Administrativa promovido pela ADunicamp, nesta quarta-feira, 12 de novembro. O debate reuniu pesquisadores, especialistas e representantes sindicais para discutir os impactos das novas regras fiscais sobre o Estado brasileiro, o serviço público e os direitos de servidores. O debate foi teve a presença dos economistas Kaio Pimentel e Pedro Paulo Bastos, ambos do IE (Instituto de Economia) da Unicamp, e do advogado trabalhista Matheus Girelli, da LBS Advogadas e Advogados. A mediação foi conduzida pelo vice-presidente da ADunicamp, Luciano Pereira (IE).

O debate evidenciou também a convergência entre economia, política fiscal e direitos trabalhistas, mostrando que os limites impostos pelo arcabouço fiscal e pela Reforma Administrativa não afetam apenas servidores, mas têm potencial para reconfigurar o Estado brasileiro, comprometer políticas públicas e restringir direitos sociais previstos na Constituição de 1988.

Na abertura do debate, o professor Kaio Pimentel apresentou um panorama das regras fiscais no Brasil e no mundo. Essas regras começaram a ser implantadas, sob o comando de instituições financeiras como o FMI (Fundo Monetário Internacional), justamente para quebrar as políticas de pleno emprego e do chamado Estado de bem-estar social, conceito que se que se expandiu pelo mundo no pós-guerra, consolidando-se especialmente na Europa. O estado de bem-estar social é um modelo de organização política e econômica em que o governo se responsabiliza pela proteção e promoção do bem-estar de seus cidadãos, garantindo direitos sociais como saúde, educação, segurança e assistência social.

Até 1985, lembrou Kaio, apenas cinco países no mundo adotavam regras fiscais com o objetivo de coibir gastos públicos. Desde então, e no contexto de expansão das políticas neoliberais, regras fiscais foram sendo implantadas em larga escala no mundo e, hoje, segundo dados do FMI do ano passado, mais de 100 países no mundo já as adotam.

No caso brasileiro, afirmou, as regras fiscais atuam simultaneamente e concentram-se exclusivamente no controle do gasto primário, do gasto público, e deixam de fora o principal componente do crescimento da dívida, que são os juros elevados. O professor destacou que o Brasil paga, proporcionalmente ao PIB, muito mais juros da dívida do que economias avançadas ou emergentes, o que representa mais de três vezes a média internacional. Esse quadro, argumentou, “impede a expansão de políticas públicas e sustenta uma dinâmica de concentração de renda”.

Kaio lembrou que apenas recentemente, a partir de 2023, o Brasil recuperou uma trajetória econômica de crescimento, que havia sido fortemente abalada pelo ajuste fiscal de 2015. “O ajuste de 2015 provocou a pior e mais longa recessão da história brasileira”, apontou. Somente em 2024 o país voltaria ao nível de renda per capita de 2013. “A retomada do crescimento em 2023 e 2024, por sua vez, está ligada à flexibilização fiscal possibilitada pela atual PEC da Transição”, mas esse é um processo que, segundo ele, já se encontra ameaçado pelos limites rígidos do NAF (Novo Arcabouço Fiscal).

O NAF, que entrou em vigor em 2023, é a legislação de regras fiscais brasileira que substituiu o Teto de Gastos. Declaradamente, foi implantado para controlar o crescimento das despesas públicas, estabelecer metas de resultado fiscal, o famoso superávit primário que, na verdade, constitui instrumento que garanta o pagamento da dívida pública. A principal diferença para o teto anterior é a vinculação do crescimento dos gastos à arrecadação: para cada aumento real de receita primária, os gastos podem crescer apenas limitadamente. “Estamos vivendo uma desaceleração induzida pela própria regra fiscal”, alertou Kaio.

É dentro deste contexto neoliberal, que chega a proposta da Reforma Administrativa. “Ela tenta estender aos estados e municípios os mesmos constrangimentos impostos pelo arcabouço fiscal federal, ampliando riscos à prestação de serviços públicos e à preservação de direitos”, avaliou.

ESTADO SOCIAL EM RISCO

O professor Pedro Paulo Bastos ampliou a discussão, analisando o arcabouço fiscal a partir de uma “perspectiva histórica e político-ideológica”. Tanto o NAF e como as reformas administrativas em curso, avaliou ele, estão dentro da expansão neoliberal desencadeada mundialmente desde os anos 1970 e 1980 e buscam reversão das conquistas sociais e da capacidade estatal de induzir desenvolvimento.

Para Bastos, o neoliberalismo deve ser compreendido como uma construção ideológica capaz de definir o que pode ou não entrar na agenda dos governos. “Não estamos discutindo matemática, mas relações de poder”, afirmou. O objetivo das regras fiscais, disse, é impedir políticas de gasto capazes de sustentar pleno emprego, ampliando a dependência do setor público em relação ao mercado financeiro e retirando espaço político das classes trabalhadoras.

O economista mostrou projeções do próprio Ministério da Fazenda que indicam queda do gasto público federal de cerca de 19% para 17% do PIB até 2032, caso o NAF seja mantido como está. O NAF impõe um teto de crescimento de 2,5% para o conjunto das despesas sociais do Estado, condicionado ao crescimento da arrecadação. Mas como, segundo ele, setores como saúde e educação crescem, obrigatoriamente, nos mesmos índices do crescimento da arrecadação, exigem investimentos substanciais. Assim, outras áreas do Estado, “como habitação, segurança, programas sociais e políticas públicas diversas, serão gradualmente comprimidas até praticamente desaparecerem”.

O desmonte do Estado defendido pela política neoliberal atende a interesses claros envolvidos nessa dinâmica: setores empresariais que lucram com o desmonte do serviço público, rentistas favorecidos pelos juros altos e grupos privados que disputam mercados bilionários, como os de educação e saúde. O professor criticou duramente a continuidade da política monetária atual, mesmo após mudanças na presidência do Banco Central, classificando-a como alinhada aos interesses rentistas.

A partir dessas perspectivas, a reforma tributária vai representar um verdadeiro desmonte das políticas públicas e da segurança cidadã, estabelecidas pela Constituição brasileira, desde 1988. Para Pedro Paulo, é indispensável que as organizações sindicais e sociais construam uma campanha nacional de esclarecimento da população, que foque na retirada da educação e saúde das metas fiscais e amplie o debate público em torno da reconstrução do Estado social previsto na Constituição de 1988. “Essa deve ser a pauta mínima em 2026”, concluiu.

IMPACTOS DIRETOS DA REFORMA

O advogado Matheus Girelli detalhou alguns dos principais efeitos diretos da Reforma Administrativa sobre a vida dos servidores públicos. “A reforma se apoia em um discurso de ‘eficiência’, ‘modernização’ e ‘fim de privilégios’, mas seu real impacto é uma profunda reestruturação das carreiras e remunerações, com prejuízos significativos, especialmente para novos servidores”, avaliou ele.

Um dos pontos centrais é a criação da TRU (Tabela Remuneratória Única), válida para União, estados e municípios, e que causaria forte impacto na remuneração do servidor, com a justificativa de tentar enxugar o Estado”. A Para isso, cria uma figura nova: a TRU (Tabela Remuneratória Única). “Hoje, existem diversas carreiras no serviço público. Por exemplo, aqui na universidade, temos a carreira MS, que é a carreira docente; a carreira PAEP e assim por diante. Cada uma tem seus níveis de remuneração, atende as peculiaridades de cada carreira. A reforma propõe uma tabela remuneratória única, dividia em 20 níveis.”

Essa padronização obrigaria instituições como a Unicamp a reenquadrar todas as carreiras em até 120 meses, reduzindo salários de ingresso e retirando dos sindicatos a possibilidade de negociação direta com o Cruesp, uma vez que qualquer decisão sobre aumento salarial nos mais diferentes níveis de entes públicos estaria sujeita a uma decisão do Governo Federal de plantão.

Girelli alertou que a reforma permitiria que novos servidores recebessem salários inferiores aos dos atuais ocupantes dos mesmos cargos, sem que isso fosse considerado violação da isonomia, uma mudança que, segundo ele, “constitucionaliza desigualdades” dentro do serviço público.

Outro eixo central da PEC é a imposição de uma lógica de meritocracia estrita, baseada em metas institucionais e avaliações periódicas, que condicionam progressões e benefícios. Essa lógica, afirmou, aproxima o setor público de um modelo empresarial e cria competição interna, com riscos para a saúde e para o equilíbrio das equipes. Ele também destacou que o chamado “bônus de resultado”, que substitui vantagens como anuênios e sexta parte, não se incorpora ao salário, não conta para aposentadoria e não está garantido para todos.

O advogado chamou atenção ainda para o enfraquecimento generalizado de direitos, como a eliminação de benefícios vinculados ao tempo de serviço, a obrigatoriedade de devolução de valores recebidos de boa-fé em caso de erro da administração e a limitação de reajustes reais de auxílios e indenizações. Além disso, alertou para o risco de precarização decorrente da ampliação de contratações via CLT, consórcios públicos e terceirizações, combinada ao esvaziamento do regime jurídico único.

Por fim, o advogado criticou a restrição do acesso ao Judiciário prevista na reforma, que condiciona o reconhecimento de direitos a precedentes qualificados dos tribunais superiores, prolongando processos e empurrando pagamentos para o regime de precatórios. “Em resumo, a reforma não é sobre eliminar privilégios, mas sobre rebaixar salários, enfraquecer carreiras, retirar direitos e precarizar vínculos”, concluiu.


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