Ameaças à universidade e à ciência são visíveis, mas também invisíveis


As instituições públicas de ciência, educação e pesquisa brasileiras vivem sob intenso ataque do capital privado, que busca a privatização plena delas, e também sob o controle permanente de interesses que buscam orientar seu destino e conter sua independência. Mas, dentro desse contexto, florescem também ataques invisíveis, vindos de setores internos das próprias instituições, que mesmo contrários à privatização física do que é público, alimentam a privatização do conhecimento e da “produção de conhecimento”.

Essas foram algumas das questões discutidas na segunda mesa do primeiro dia do seminário “O Negacionismo Científico e os Ataques à Pesquisa em São Paulo”. Com o título “As ameaças invisíveis e visíveis às instituições públicas de ensino e pesquisa”, a mesa reuniu o geógrafo Rogério Bezerra da Silva, do portal de notícias Radar Democrático; o presidente da Adunesp, Antônio Luís de Andrade, e foi mediada pelo pesquisador do Instituto Florestal, Frederico Arzolla.

O seminário foi realizado nos dias 24 e 25 de setembro a partir de uma parceria entre a ADunicamp, o portal Radar Democrático, a APqC (Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo) e a Seção Sindical Campinas Jaguariúna do SINPAF (Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário).

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MARCO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA: ENTREGA DO CONHECIMENTO PÚBLICO AO SETOR PRIVADO

As “ameaças visíveis” às universidades e institutos públicos de pesquisa ficam claras nos ataques permanentes desfechados contra eles e que buscam, como desfecho final, a privatização de suas estruturas e serviços. “Mas existem ameaças invisíveis, das quais não nos damos conta. Pensamos sempre no ataque externo, mas também existe uma privatização por dentro”, afirmou o primeiro palestrante da mesa, Rogério Bezerra da Silva, doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp.

Algumas dessas “ameaças invisíveis” estão claramente delineadas no MLCTI (Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação), sancionado em 2016 e, hoje, em pleno vigor. Para Rogério, “o Marco Legal permite uma privatização por dentro das instituições”, e com apoio de muitos docentes e pesquisadores.

“Quando tratamos de sistemas públicos, não encontramos, entre aqueles os defendem, a privatização dos seus serviços ou de seus agentes. Para todo sistema público, como educação, saúde, existe sempre uma defesa forte da presença do Estado. Mas quando entramos em outro sistema, que é a produção de conhecimento dentro das universidades e institutos de pesquisa, a situação fica conturbada.”

Rogério trouxe, como exemplo, o SUS (Sistema único de Saúde), mas advertiu: “Vou citar o SUS, mas deixo claro que isso que digo agora se aplica a todas as instituições públicas.” As pessoas que defendem o SUS, assim como quem defende a educação pública, disse ele, defendem com clareza o papel do Estado na sua gestão.

“Quando se fala na propriedade dos equipamentos, dos hospitais, defendemos que o Estado os construa e administre. Quem defende o SUS defende que o financiamento seja público, defende que os servidores públicos, médicos, enfermeiros e todos mais, sejam servidores públicos. Quem defende o SUS defende o sistema privado apenas como complementariedade do sistema SUS, ou seja, apenas uma pequena participação privada quando o SUS não dá conta.”

Mas, argumentou ele, quando se trata da “produção de conhecimento” a situação muda radicalmente. “Aí vemos que o negacionismo não está só fora, mas também dentro da universidade. Até dentro do campo progressista existe um certo obscurantismo quando tratamos dessa questão. E estou aqui falando também de muitas pessoas que defendem o SUS e a educação pública e que são frontalmente contra a sua privatização.” O Marco Legal de Ciência Tecnologia e Inovação, elaborado inclusive com a participação de docentes e pesquisadores, e sancionado durante o governo de Dilma Roussef, é para Rogério o exemplo claro e institucionalizado desse “obscurantismo”.

“Vamos comparar o que falamos do SUS com o Marco Legal. O Marco incentiva não só uma ocupação vinda de fora, mas vinda por dentro. Afinal, quem domina ciência e tecnologia não está fora das universidades, mas dentro. O Marco permite, entre outras coisas, que um pesquisador contratado pela universidade possa se afastar para prestar o mesmo serviço em outra instituição, mesmo que privada, ganhando o que ele ganha, mantendo as gratificações e a carreira.”

Situações que seriam inimagináveis quando se trata de equipamentos públicos em áreas da saúde e educação, na análise de Rogério, foram institucionalizadas e permitidas legalmente quando se trata da produção de conhecimento. “Imagina se fizéssemos isso no SUS: se permitíssemos que um médico contratado pela universidade, pudesse ser afastado para um hospital privado. Seria totalmente condenável, mas é permitido no sistema de produção de conhecimento.”

A privatização “por dentro” do SUS também ocorre, lembrou Rogério, com a canalização de recursos públicos diretamente para o setor privado, no sistema complementar; e também pela permissão do compartilhamento de gestão pelo público e o privado, entre diversas outras ações.

Mas no caso das ações privatizantes contra o SUS e a educação pública, há uma disputa ferrenha do setor privado para engolir as instituições e o financiamento público. “Mas é diferente na produção de conhecimento, onde a participação da empresa privada é ínfima. A disputa não vem pelo sistema externo. Os laboratórios de remédios e outros não querem tomar universidades. A privatização vem internamente. De dentro das universidades para servir a empresas privadas.”

O mediador da Mesa, Frederico Arzolla, que preside a CPRTI (Comissão Permanente do Regime de Tempo Integral), órgão responsável pela carreira do pesquisador científico do Estado de São Paulo, apontou que “ameaças invisíveis” chegam também por tortuosos caminhos.

“Muitas ameaças são disfarçadas e vêm com a malfadada palavra ‘modernização’, que quase sempre não é modernização nenhuma, mas é o atraso. Quando se fala em ‘parcerias’ o que quase sempre ocorre é entrega do patrimônio público. ‘Fortalecimento é, na verdade, desestruturação. É importante trazer essas histórias para sociedade. Elas não são só questão de ‘narrativas’”.

UM PROJETO PARA O PAÍS: ROMPER A SUBMISSÃO DA CIÊNCIA AOS INTERESSES DO CAPITAL ESTRANGEIRO

A questão da soberania nacional, de um projeto cultural, científico e tecnológico brasileiro “não está alheia aos interesses do imperialismo em nível mundial”, na avaliação do presidente da Adunesp, professor Antônio Luís de Andrade. “Sempre entendemos as investidas contra nossos projetos nacionais, principalmente na forma como os EUA sempre atuou em nosso país. Tivemos a Aliança para o Progresso, o acordo MEC/Usaid, claramente criados para manter mecanismos de controle sobre nossas instituições”, argumentou.

Mesmo diante da ausência de um projeto de nação soberana, com a submissão agravada no período da ditadura militar, as universidades e instituições públicas de pesquisa conseguiram construir um programa de financiamento que garantiu um mínimo de autonomia científica e tecnológica, mesmo sob a necessária chancela dos interesses norte-americanos. “Muitas destas pesquisas, inclusive bem boas, foram financiadas pela Fundação Ford.”

Para o professor, a forma de atuação dos interesses norte-americanos na construção da cultura brasileira não mostra nada de novo do ponto de vista histórico. “Os romanos conquistavam nações e levavam filhos dos reis e das elites para estudar em Roma. E eles voltavam com a mentalidade de romano. Hoje não é diferente. Hoje não é diferente. Os golden boys foram para Chicago aprender neoliberalismo. Nossos pesquisadores, nossos cientistas são levados para fora. Vão para os EUA e voltam perfeitamente adequados ao modelo de desenvolvimento tecnológico e produtivo dos EUA, do capitalismo, do imperialismo.”

Desde as revoluções burguesas, as elites dominantes assumiram, relatou o professor, que precisam controlar ciência e tecnologia e a forma de produção do conhecimento, ou seja, têm que dominar o trabalhador que produz esse conhecimento. “Então, o que temos que avaliar e discutir é o modelo de desenvolvimento que queremos e de apropriação da ciência que se adeque a esse modelo. Temos que discutir que tipo de desenvolvimento e ciência queremos construir. O Brasil vive a fome intelectual, fome de educação e a fome mesmo. E o que adianta, para quem tem fome, todo o avanço científico ou tecnológico que obtivermos se ele vai continuar com fome. Daí, o que precisamos é de um projeto que realmente pense o país.”

Mas, pontuou o professor, o Brasil tem uma classe dominante altamente atrelada ao interesses estrangeiros, com um poder aquisitivo absurdamente alto “que viaja de jatinho e compra relógios que custam milhares de reais” e, portanto, não tem o menor interesse em que a situação mude. “É um pacto com potências dominantes que estão na nossa estrutura há muito tempo. Desde que éramos exportadores de pau-brasil.”

Assim, a ciência brasileira, se dá nos limites de uma “subciência”, com restrições á pesquisa claramente estabelecidas pelos EUA, “como no caso da pesquisa brasileira em energia nuclear”, nos medicamentos, na política de patentes, nos bancos de germoplasma e assim por diante.

“Mesmo sob permanentes ataques e com todas as limitações, fazemos muito com o que temos, mais do que é possível fazer”, avaliou Antônio, ao apontar importantes conquistas recentes e históricas da ciência e da pesquisa brasileiras. “Só que tudo que nós temos nas nossas universidades está nos sistemas tecnológicos norte-americanos. Todos os dados na mãos de big techs. Se bloquearem, estamos na roça.”

Portanto, tudo o que se refere às universidades e ciências no Brasil tem a ver com soberania. “Não vamos ter nunca uma pesquisa independente enquanto estivermos sob interesse do grande capital.” Trata-se, defendeu ele, de desenvolver um projeto de país, que tenha como meta também a soberania alimentar, a independência e soberania econômica. “Então, quando falamos em ciência, precisamos chegar na população, popularizar também o conhecimento.”


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