Por Marcio Moretto Ribeiro*
Hoje participei como presidente da Adusp da abertura do 9º Congresso do Sinteps, o sindicato que representa os trabalhadores do Centro Paula Souza, responsável pelas Etecs e Fatecs de São Paulo. Até aqui, minha relação com o Sinteps se dava sobretudo por meio do Fórum das Seis, espaço de articulação entre os sindicatos das universidades estaduais paulistas e do próprio Centro Paula Souza. Talvez essa tenha sido a primeira vez que me relacionei com o Sinteps fora do Fórum. No auditório, havia algumas dezenas de pessoas, mas com uma baixa presença feminina, como observou em tom crítico a representante do STU que se sentava ao meu lado. Quando fui chamado a falar, improvisei algumas palavras lembrando nossas lutas comuns, especialmente em torno do financiamento das universidades estaduais após a reforma tributária, e também do receio compartilhado, por ambos os sindicatos, diante das mudanças que podem vir com a reforma administrativa. No entanto, senti que minha fala não deu conta do que eu gostaria de expressar, e por isso articulo melhor estas ideias neste texto.
Como discuti em O medo da queda, apoiando-me na análise de Barbara Ehrenreich, a classe média profissional-gerencial ocupa uma posição estrutural distinta no capitalismo tardio. Não é proprietária dos meios de produção, mas também não se confunde com o proletariado. Ela vive da venda de uma força de trabalho qualificada, que combina conhecimento técnico com certa autonomia e que precisa ser continuamente renovada, a cada geração, por meio de credenciais acadêmicas e profissionais. Essa condição leva a classe média a construir sua identidade em torno de uma ideologia própria: o mérito. Nessa visão, o valor de cada indivíduo se mede pelo esforço dedicado aos anos de estudo e pela competência certificada no exercício profissional. O mérito, assim, não apenas organiza sua forma de ver o mundo, como também legitima desigualdades e estabelece distinções simbólicas. Ele funciona como uma crença moral que sustenta a posição social dessa camada e alimenta a ansiedade permanente de perder o status conquistado.
Seguindo a análise de Michael Sandel, em A Tirania do Mérito, a meritocracia é a ideologia hegemônica da sociedade atual. Desde os anos 1980, essa ideologia atravessa espectros políticos distintos e se apresenta como linguagem comum para justificar desigualdades. Sua força está em parecer neutra e justa: todos devem competir em igualdade e, então, colher o que merecem. Por isso, enquanto preconceitos como racismo e sexismo foram sendo desacreditados (ainda que não eliminados), o credencialismo se manteve como “o último preconceito aceitável”, a permissão tácita para discriminar quem tem menos escolaridade ou credenciais. Essa crença legitima a arrogância dos vencedores e a humilhação dos perdedores, corroendo a possibilidade de solidariedade de qualquer forma.
A crítica mais comum à meritocracia sustenta que ela nunca se realizou plenamente: haveria sempre barreiras de origem social, de gênero ou de raça que impedem a verdadeira igualdade de oportunidades. Nessa visão, o problema estaria no fato de que o ideal não foi alcançado e a solução seria aperfeiçoar os mecanismos de acesso até que todos pudessem competir em condições iguais. Michael Sandel segue outro caminho. Ele mostra que mesmo uma meritocracia perfeita continuaria sendo injusta, pois inevitavelmente produziria ganhadores e perdedores. Pior, legitimaria essa divisão como se fosse moralmente justa. Os vencedores tenderiam a atribuir seu sucesso apenas ao próprio mérito, ignorando o papel da sorte e das circunstâncias, enquanto os perdedores seriam levados a internalizar seu fracasso como incapacidade pessoal. O resultado seria uma ordem social marcada pela arrogância no topo e pela humilhação na base. É isso que transforma o mérito em tirania.
Com o enfraquecimento da organização sindical, o diploma universitário se consolidou como o único caminho de reconhecimento social, garantindo à classe média a possibilidade de manter sua posição e transmiti-la às próximas gerações. Quanto mais pessoas passam a desejar esse título, enquanto ele permanece escasso, mais ele se valoriza para aqueles que já o possuem ou estão em melhores condições de conquistá-lo. É nesse contexto que o mérito se afirma como ideologia da classe média profissional-gerencial, difundindo a crença de que a dignidade só pode ser alcançada pela ascensão acadêmica. Ao fazer isso, porém, essa ideologia não apenas valoriza a posição da própria classe média, como também desprestigia a classe trabalhadora, relegando-a a uma condição subalterna. Os cursos técnicos, em vez de reconhecidos por sua importância social e coletiva, passam a ser vistos como o destino simbólico dos que “não conseguiram” vencer no jogo do mérito, a trilha dos perdedores dentro de um sistema tirânico.
Para mitigar o problema, Sandel defende que o ingresso nas universidades não deveria depender apenas do desempenho em provas ou de credenciais escolares, mas combinar aptidão mínima com um sistema de sorteio, de modo a evitar que o mérito se torne um mecanismo de humilhação. Trata-se de uma proposta à qual me sinto bastante próximo. Do outro lado, ele insiste na necessidade de dignificar as funções técnicas, valorizando os saberes práticos que sustentam a vida em sociedade. Isso significa investir no ensino técnico, garantir salários adequados, assegurar condições de trabalho justas e, sobretudo, conferir prestígio simbólico a essas profissões.
Foi isso que não consegui expressar plenamente no momento em que falei na abertura do congresso do Sinteps. Ao improvisar, destaquei apenas nossas lutas comuns em torno do financiamento e das reformas em curso, mas o essencial ficou de fora. Se nossa posição de classe nos divide, o caminho para uma transformação estrutural passa por superá-las, a começar derrubando as distinções simbólicas que nos separam. Aqueles que querem uma sociedade mais justa não devem convencer os outros de que seu caminho é o único que dignifica, tentar fazer com que o outro sonhe o seu sonho. Devemos sim sonhar juntos uma sociedade em que todas ocupações sejam dignas. É preciso lutar não só por recursos e contra a precarização, mas também por reconhecimento, de modo que o valor do mecânico, da técnica de enfermagem ou do professor da escola técnica não seja menor que o do doutor universitário.
*Texto publicado originalmente no site Medium (acesse aqui).
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