Mohamed Habib, um intelectual público


“(…) Registra-me, sou árabe (…)
Escreve bem no alto da primeira página
que eu não odeio os homens que eu não agrido ninguém.
Mas… se me esfomeiam
como a carne de quem me despoja, cuida-te de minha fome
e minha cólera.”

Carteira de identidade, Mahmoud Darwish

Por Caio Navarro de Toledo*
Fonte: Unicamp, publicado originalmente neste link

Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib (1942-2022), nestes dias, recebeu justas homenagens de setores acadêmicos e de entidades externas à Unicamp. A excelência e a extensão de sua produção acadêmica na área das Ciências Biológicas – que se expressam pela publicação de livros, artigos, apresentação de textos em simpósios acadêmicos nacionais e internacionais etc. –, a seriedade com que exerceu a docência, a competência como orientador das pesquisas de seus alunos, o intenso envolvimento e integridade moral no desempenho de tarefas administrativas na Unicamp (chefia de departamento em dois períodos, diretor do Instituto de Biologia por duas vezes, membro do Consu; Pró-Reitor e outras funções universitárias) foram devidamente registradas e exaltadas em notas da comunidade acadêmica da Unicamp.

Neste breve texto, buscarei ressaltar as atividades e compromissos assumidos por Mohamed Habib, ao longo de 50 anos de vida, que o qualificam como um exemplar intelectual público. Reconhecendo que estes engajamentos também foram lembrados nas notas anteriormente publicadas, cabe aqui sublinhá-los e, de forma breve, refletir sobre eles.

A meu ver, o perfil do intelectual comprometido com causas politicamente libertárias já estava prenunciado pela atuação do jovem Mohamed, em fins dos anos 1960 e 1970 – seja como estudante, seja como docente iniciante – nas atividades críticas e politizadas promovidas por grupos de teatro e cinema amadores da Universidade de Alexandria, Egito. Em depoimento, Mohamed observou que, “hoje, os melhores artistas de cinema e de teatro no Egito são exatamente os da minha geração”.

Desde que ingressou na Unicamp, em 1972, Mohamed Habib se comprometeu, de corpo e alma, com a defesa de causas progressistas e democráticas – que alguns preferem denominar humanitárias – reivindicadas por movimentos sociais e políticos no Brasil e no exterior.

Embora proclamasse com orgulho sua condição de brasileiro naturalizado, Mohamed não deixava de se identificar com a afirmação do verso inicial de “Carteira de Identidade”, magistral poema de Mahmud Darwich: “Registra-me, sou árabe”.* Neste sentido, o imigrante que foi acolhido de braços abertos pela Unicamp e que, em poucos anos, seria “vitorioso” num país distante de sua terra natal, jamais negou suas raízes e solidariedade com as reivindicações dos povos árabes que ainda lutam pela autonomia nacional, pela conquista da democracia política e por radicais transformações sociais e econômicas.

Orientado intelectualmente pela obra teórica e pela trajetória política de Edward Said (1935-2003), Mohamed exerceu relevantes atividades políticas e culturais: foi Coordenador de Relações Internacionais (CORI) da Unicamp entre 1998 e 2002 e, em novembro de 2001, esteve à frente da organização do Simpósio Internacional: “Os Direitos Humanos do Povo Palestino” , evento que contou com a presença de intelectuais, religiosos e lideranças israelenses e palestinas, além de outros representantes de entidades políticas e culturais brasileiras.

Entre os vários reconhecimentos públicos que recebeu, destaca-se o prêmio “Direitos Humanos, o novo nome da Liberdade”, a ele outorgado em novembro de 1995, pela Presidência da República.

Como arguto analista da política internacional sobre o Oriente Médio, participou intensamente de debates sobre os recorrentes conflitos árabe-israelense, os eventos de 11 de setembro de 2001 e a chamada “Primavera Árabe” (2010 e 2011). Com frequência também era convidado a debater a questão palestina, em programas de rádio e TV da mídia empresarial, imprensa alternativa, blogs democráticos e entidades universitárias, políticas e culturais.

De forma polida e serena nesses debates, Mohamed dialogava com seus interlocutores, sem nunca abrir mão de suas firmes convicções críticas. Sobre a questão palestina sempre tomou partido, questionando as formulações dos analistas simpáticos ao sionismo e pró-Império, majoritariamente presentes nestes debates nas rádios e TV. Sem hesitação, defendia os direitos territoriais do povo palestino e seu direito de resistência diante das permanentes agressões sofridas.

Em um artigo do Jornal da Unicamp, Mohamed ressaltava que, para entender os problemas atuais, não podemos esquecer a história. Neste sentido, uma reflexão da intelectual judia, Hannah Arendt, impunha ser lembrada: a luta contra a opressão é a luta da memória contra o esquecimento: “com efeito, a história mostra claramente quanto os palestinos indefesos sofreram e continuam sofrendo de fanatismo agressor religioso e geopolítico”.

Para o prof. Mohamed, “aos oprimidos”, como são os palestinos, “resta apenas a resistência, que é um direito jurídico, moral e politicamente legítimo”. Afinal, indagava ele, não é o que, em 1982, a Assembleia Geral da ONU aprovou ao votar uma resolução afirmando “a legitimidade da luta dos povos pela independência, integridade territorial, unidade nacional e libertação da dominação colonial e ocupação estrangeira por todos os meios disponíveis, incluindo a luta armada”?

Para Mohamed, reivindicar que o povo palestino tenha seu lugar na história é uma responsabilidade de todos e todas, particularmente do/as acadêmico/as e intelectuais “humanistas” que têm o dever de repudiar a barbárie que hoje se manifesta pelas guerras imperiais, pela supressão de direitos de povos e nações, pela super exploração de classes, pelo racismo etc.

Embora aposentado da Unicamp em 2012, Mohamed manteve, como professor colaborador, um forte vínculo com a Universidade. Como intelectual público, nunca ensarilhou as armas da crítica.

Em depoimento, confessou que, na condição de aposentado, desejava dedicar parte de seu tempo à música, notadamente ao alaúde, seu instrumento preferido; as interpelações sociais e políticas que recebia, contudo, exigiam o adiamento desses esperados momentos de lazer.

Um desses apelos foi o convite recebido para integrar a direção da Adunicamp – entidade sindical cujas assembleias buscava sempre frequentar – durante o período de 2020-2022. Prontamente aceitou o desafio, sendo eleito para a 1ª Secretaria da atual direção da entidade. Tal gesto não seria revelador de sua permanente disposição de participar das iniciativas e lutas empreendidas pelos docentes de sua universidade?

Durante 4 anos, foi um atuante presidente do Instituto de Cultura Árabe do Brasil (2015-2019) que, em sua nota de pesar, lamenta a morte do “grande mestre da cultura árabe”. Embora com a saúde combalida, Mohamed não recusava convites para proferir palestras, participar de debates e elaborar artigos sobre a cultura árabe, a conjuntura política do Oriente Médio e, ultimamente, sobre questões ambientais.

Como registra uma nota, divulgada pelo PT de Campinas, Mohamed também ia às ruas. Em junho 2021, por exemplo foi um dos oradores no ato das 500 velas acesas em homenagem às vítimas do coronavírus, nas escadas do Paço Municipal de Campinas. Organizado por várias entidades religiosas e civis, a manifestação popular exigiu mais vacinas, auxílio emergencial e ações efetivas de combate ao desemprego e à fome.

Lembrando as palavras de Brecht, impõe ser dito que Mohamed Habib foi uma figura humana imprescindível porque lutou durante toda a sua fecunda vida.


Caio Navarro de Toledo

Professor aposentado do IFCH
Ex-membro da Comissão da Verdade e Memória “Octavio Ianni” da Unicamp


* Uma leitura do comovente poema Carteira de Identidade, de Mahmoud Darwish (1941-2008), poeta palestino, pode ser vista aqui.


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