A pandemia e os governantes: a tragédia e a farsa


Por Gustavo Tenório Cunha
(FCM/Unicamp e ADunicamp)
A conversão do Brasil em terra arrasada, meticulosa e dedicadamente construída pelo governo Bolsonaro, traz uma situação relativamente confortável para alguns governantes locais: basta não habitar o extremo péssimo para sair-se como gestor razoável. Para muitos prefeitos e governadores parece confortável a convivência com um governo federal que é aliado do vírus desde a primeira hora. Mas o fato é que a condução do enfrentamento da pandemia pelos governos estadual e municipal, deixa muito a desejar. Todos os dias (e cada vez mais) desfilam notícias sobre o aumento de vítimas da  COVID-19. Familiares de amigos, conhecidos, trabalhadores de serviços de saúde… a cada relato de pessoas sem tratamento adequado, de pessoas que morreram na fila, de pessoas que morreram mesmo com tratamento, me pergunto: quantas destas mortes e danos poderiam ter sido evitadas se as decisões locais tivessem sido outras? Se tivéssemos aprendido alguma coisa neste ano de pandemia?
No momento em que escrevo o HC-Unicamp cancela todas as cirurgias eletivas para tentar acolher mais casos de  COVID-19. O Pronto Socorro está com uma ocupação de 350%. Os números não podem expressar o significado real desta situação, para doentes, familiares e trabalhadores da saúde. Além das mortes causadas pela  COVID-19, vão se somar, silenciosamente, as mortes por desassistência, daqueles que precisam de atendimento e não tem (terão). A despeito do sofrimento e das mortes evitáveis de tantos seres humanos, Campinas entrou na fase vermelha apenas na primeira semana de março, e o fez demasiadamente tarde. Assim como o Estado de São Paulo.
É preciso dizer que a chamada “fase vermelha” está longe de ser o lockdown que seria necessário para interromper a circulação do vírus e diminuir a gravidade do colapso em que o sistema de saúde já está. Por este motivo, podemos esperar que a terceira semana de março seja bastante pior que a segunda semana. No entanto, em  15 de fevereiro já se sabia que a prevalência da variante P1 (originada em Manaus) predominava em 67% das amostras no Brasil¹. Neste momento, já seria tarde para fazer um lockdown de verdade. Não foi feito e o governo do Estado de São Paulo, assim como a prefeitura de Campinas (juntamente com outros grandes municípios), não podem alegar ignorância. Desde janeiro se sabia que a variante P1 se espalharia. Assim como se sabia que a sabotagem do governo federal à vacina (tanto à credibilidade quanto às compras no momento oportuno) impediria que ela chegasse antes da nova variante. Desde janeiro o Estado de São Paulo e os municípios podiam ter atuado de forma responsável.
Gráfico: média diária da prevalência da variante P1 no Brasil

Fonte: www.outbreak.info.
Em vez disso, o que vimos foi um desfile de barbaridades: repetiu-se a estratégia de utilizar o número de leitos hospitalares ocupados como único parâmetro para tomar decisões de enfrentamento da pandemia. Embora seja de conhecimento público que o simples aumento do número de leitos não detém a pandemia e, portanto, não evitaria a tragédia que visivelmente  se aproximava, durante várias semanas de aumento de internações, a proposta dos governos estadual e municipal se resumiu a aumentar leitos (ou declarar que aumentaria, ou cobrar outro governante pela falta de leitos). Além disso, as medidas de restrição de mobilidade, quando bem feitas, levam pelo menos 15 dias para ter impacto sobre as internações. Ou seja, mesmo que se utilizasse apenas este parâmetro, a demora em tomar atitudes concretas foi enorme.
Em paralelo a essa paralisia e a este monitoramento equivocado, que ignorava propositalmente o avanço da variante P1 para quase todo o território nacional, pudemos ver, com frequência,  os governantes tentarem transferir a responsabilidade do controle da transmissão do vírus para a população, como se fosse possível enfrentar a pandemia com voluntarismo individual e abstenção dos governos.  Como se não bastasse, a prefeitura de Campinas insultou a inteligência de todos com medidas de suposta restrição da “mobilidade noturna” (das 21h às 5hs), desperdiçando um tempo precioso e confundindo a população. Para efeitos de comparação, a Inglaterra (cujo governo também cometeu erros graves no início da pandemia), assim que detectou uma variante potencialmente perigosa no início deste ano, decretou lockdown imediatamente (em 4 de janeiro). Lockdown de fato! Sendo que  a Inglaterra já figurava entre os primeiros países a vacinar sua população.  Para completar, tivemos que assistir o governo estadual insistir na abertura de escolas até ser derrotado na justiça pelo sindicato dos professores (APEOESP). Isto em plena ascensão da pandemia!!
Mas talvez a maior perversidade dos gestores locais (e nisto se igualaram ao governo federal) foi contrapor por diversas vezes as medidas necessárias para o enfrentamento da  COVID-19 à sobrevivência econômica das pessoas, principalmente aquelas em situação mais vulnerável. Fizeram isso enquanto sabemos que a pandemia aumentou significativamente a fortuna dos bilionários brasileiros. E todos os gestores sabem que, assim como acontece com a maior parte das doenças mais prevalentes, a  COVID-19 faz mais vítimas entre os economicamente mais vulneráveis. 
Os números da  COVID-19 não diferem de  indicadores de saúde do Brasil, que refletem a imensa desigualdade econômica e revelam que tem menos direito à vida aqueles cujo o fruto do trabalho é expropriado por condições de  trabalho cada vez piores e pelo desemprego/trabalho precário. Neste sentido, o discurso que opõe dois direitos fundamentais no enfrentamento da pandemia revela e acentua o nosso cenário de políticas públicas voltadas para o interesse de poucos, para o aumento da miséria, da exploração e da concentração da riqueza. 
Em outras palavras, em uma sociedade minimamente democrática, não seria possível pensar em proteger a população da  COVID-19 sem reforçar/criar políticas de proteção social e econômica, até porque isto não é possível. É pura  falácia, perversidade e necropolítica. E este é um fato tão estudado e consolidado que está na Constituição no seu artigo 196: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença”.  E toda esta campanha dos gestores contra a vida e na defesa dos interesses menores de aliados, resultou justamente nas decisões políticas que assistimos desde  o início da pandemia: a fase vermelha começa tardiamente no Estado de São Paulo e em Campinas e praticamente sem proteção social. Novamente alguns governantes se escoraram no governo federal, que cortou o auxílio emergencial, como se coubesse apenas ao governo federal executar este tipo de política. A falácia da “falta de recursos” é facilmente desmontada quando olhamos a distribuição desigual da riqueza no país. Ou quando olhamos para outros governos estaduais, como por exemplo  o Governo da Bahia, que implantou políticas de proteção social, como a isenção em contas públicas, a distribuição de vale refeição para estudantes, a distribuição de cestas básicas, as medidas de proteção às pequenas empresas, entre outras muitas. A cidade de Belém, para citar um exemplo municipal, criou seu próprio auxílio emergencial… Como explicar o abandono dos nossos governos estadual e municipal das populações mais vulneráveis ao vírus e à fome? O que se pode dizer? Talvez atualizar o poeta Gregório de Mattos: “Triste São Paulo, ó quão dessemelhante, (…) a ti tocou-te a máquina mercante, (…) tanto negócio, tanto negociante”.
Existe mais um aspecto que também é muito importante e foi sistematicamente negligenciado no Brasil: o rastreamento e a testagem. Um importante dirigente cubano, perguntado sobre as múltiplas ações do país no enfrentamento da pandemia, explicou que o êxito do pequeno país se devia à somatória de duas forças: a vontade política e a “robustez” do sistema de saúde com 60 anos de compromisso. 
No caso do Brasil, também podemos atribuir o trágico resultado das nossas políticas de enfrentamento da pandemia à sinergia negativa destas duas forças. O SUS, além de perder a instância nacional de coordenação (não temos nem ministro nem ministério da saúde),  está sendo afetado por um conjunto de ataques sistemáticos, desde a PEC 96, que congelou todos os gastos sociais. Por um lado, a vontade política soterrada pela estreiteza e mesquinhez, e por outro, o SUS, desfinanciado, tomado pela pauta hospitalar, desprezando sua rede assistencial (principalmente atenção básica) e seu sistema de vigilância em saúde. 
É interessante observar que não foram poucos os países com sistemas públicos de saúde tradicionais que tropeçaram no início da pandemia. Mas se recompuseram ou estão se recompondo. Na literatura científica a importância do rastreamento é inquestionável²³ e sempre foi uma recomendação da OMS. Na prática se traduz no treinamento de pessoas para encontrar contactantes dos casos positivos, orientar isolamento, testar, bloquear locais que foram frequentados pelos positivos ou suspeitos. A Inglaterra tem sido um bom exemplo: o país divulga o desempenho do NHS no rastreamento mês a mês. Ao contrário, em Campinas (e no Estado), não sabemos a porcentagem dos contactantes de casos positivos que são encontrados/orientados/testados e quanto tempo se leva em média para alcançar os contactantes. Não sabemos a porcentagem de positivos entre os contactantes. Não sabemos se houve treinamento de pessoas. Não ouvimos falar de aplicativos direcionados. E sabemos que, em Campinas,  a testagem, até poucas semanas atrás era restrita e o resultado levava até semanas para chegar. 
A vigilância de doenças contagiosas não é uma atividade desconhecida do SUS. Ela é antiga e realizada rotineiramente para várias doenças contagiosas. A vacinação na atenção básica é anterior ao SUS, e até isto foi desmontado. Em vez de adaptarmos a sabedoria tradicional para as peculiaridades da pandemia, abrimos mão das ações de vigilância e das potencialidades da atenção básica. Estas ações poderiam inclusive direcionar e localizar medidas de restrição de mobilidade, antecipar a retirada destas medidas e sustentar o controle da pandemia quando o número de casos diminuir. Perdemos potencialmente muitas vidas (e recursos) por não ter construído ações de vigilância no tempo correto, mas elas ainda são muito necessárias e factíveis, ainda que apenas localmente; A epidemia está longe de acabar ou prescindir de cuidados e começar a rastrear e testar é urgente.
Estamos em meio a uma catástrofe sanitária e política sem precedentes, mas é exatamente por respeito às vítimas diretas e indiretas e pelo compromisso com um futuro diferente, e que ninguém deseja que repita o presente, que precisamos apontar os limites das políticas públicas que nos trouxeram até aqui. É o momento de começar a reconstrução do país e das políticas públicas sociais que sustentam a solidariedade social e tornam possível a democracia.
________
1 – Gráfico disponível em www.outbreak.info.
2 – WHO 2020 “How do countries structure contact tracing operations and what is the role of apps?” disponível no endereço https://analysis. COVID-1919healthsystem.org/index.php/2020/06/18/how-do-countries-structure-contact-tracing-operations-and-what-is-the-role-of-apps/
3 – “Efficacy of contact tracing for the containment of the 2019 novel coronavirus ( COVID-19-19)” disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7307459/
4 – Relatório  COVID-19-19 RESPONSE − SPRING 2021 do governo britãnico, página 91, disponível em https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/963497/ COVID-19-19_Response_-_Spring_2021__Large_print_.pdf
 
Publicado originalmente em 11 de março de 2021


0 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *