As falácias da EAD se alastram com (e como) o Covid19



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Por Nora KrawczykProfessora da Faculdade de Educação, Unicamp.
E-mail: 3105nora@gmail.com
Com a suspensão de aulas presenciais por conta da atual pandemia, volta com força redobrada o tema Educação a Distância. Dou minha contribuição a esse debate comentando algumas das muitas falácias que defensores apaixonados da EAD têm utilizado.
Falácia 1: misturar situações de exceção com proposta político educacional
De março até hoje estamos numa situação de emergência. Pensamos que ia durar um tempo limitado e curto. Frente à falta de recursos materiais (das famílias, das escolas e dos professores), de recursos humanos e emocionais e de formação tanto das famílias quanto dos professores e alunos, colocou-se a possibilidade de suspensão das aulas. Está posição foi e continua sendo principalmente defendida por docentes das faculdades de sociais e humanas com o argumento de que não dar aula durante um ou dois meses seria menos grave que as oferecer nas condições atuais, e que poderiam ser recuperadas com a volta à escola.
Um segundo argumento, não menos importante, era e continua sendo a necessidade de resistir a um forte ataque mercadológico de empresas que durante este período estão utilizando todos os meios para vender (a governos, escolas e famílias) modelos pré-fabricados, de EAD. Um argumento importante a assinalar foi utilizado pela empresa que doou o pacote de EAD ao governo de São Paulo, o de que este modelo poderia ser testado durante a pandemia. Supõe-se que para posterior utilização.
Tudo indica que nos próximos meses teremos uma situação de exceção e será necessário definir um plano estratégico para continuar com as ‘portas abertas’ da universidade. A reitoria da Unicamp já vem pensando nisso e fica claro para todos nós as dificuldades em se encontrar a melhor solução. Sem dúvida teremos que recorrer a aulas ‘remotas’ e talvez nos aproximar bastante ao que seria EAD. Mas teremos o desafio de encontrar estratégias que não aprofundem as desigualdades já existentes, nem a dificuldade de conectividade de grupos significativos de alunos.
Falácia 2: Misturar EAD com uso de recursos tecnológicos.
Todos nós sabemos que recursos tecnológicos podem atuar de maneira complementar a outros recursos didáticos nas aulas presenciais. Podem tornar a aprendizagem mais dinâmica e muitas vezes permitem dialogar com pessoas de outros países e abrir os horizontes do ensino. Isso é óbvio, misturar isso com EAD é falácia.
Falácia 3: Nossa universidade pública, a diferença do resto do mundo, precisa deixar de ser elitista e possibilitar a distribuição de conhecimento de forma mais democrática.
Em primeiro lugar nenhuma universidade pública, em nenhuma parte do mundo, se expandiu com EAD. Todos sabem que a expansão da universidade não foi alheia à quase universalização do ensino médio. E que em alguns países estamos falando de expansão bem relativa porque a universidade é paga, inclusive a universidade à distância.
Em segundo lugar, como falar de democratização do ensino via EAD numa sociedade como a nossa onde não só a conectividade e aparelhos tecnológicos são bens para alguns, como também os espaços de moradia muitas vezes não comportam a possibilidade de concentração para o estudo. Assim, não é difícil imaginar (e este tempo de pandemia o está demonstrando) que o EAD promove uma maior desigualdade na educação, salvo em situações muito especiais – doença, regiões muito afastadas, epidemias, entre outros.
Em terceiro lugar, a universidade brasileira deu passos muito interessantes no sentido da democratização nas últimas décadas, passos que fizeram mudar bastante a ‘cara’ dela: ENEM, políticas afirmativas, etc. Não se rompe com uma tendência histórica de um dia para outro e podemos continuar lutando para que essas políticas sejam cada vez mais amplas e que a educação básica realmente se universalize com qualidade.
Falácia 4: em ‘todo o mundo isso está acontecendo’.
Para começar, quando se diz todo o mundo, não se diz nada. Que país? Que universidade? Como funciona? Por favor, vamos falar sério. Quais são as tendências hegemónicas hoje em educação?
Será que alguém se anima a negar a tendência de privatização dos direitos sociais, o usufruto dos recursos públicos por grandes empresas privadas com a implantação de ‘novos’ modelos de gestão (escolas charter, voucher, homeschooling), ou com serviços de consultoria, material didático, pacotes tecnológicos de EAD. Tudo isto está acontecendo em todo o mundo. Vamos entrar na onda neoliberal? É isso que se está pedindo?
Ao mesmo tampo, sem dúvida a pandemia está acelerando a implementação de ferramentas digitais no Brasil e de venda de plataformas para todos os níveis de ensino, tal como afirma com entusiasmo o Sr. Lemann, que todos nós sabemos quem é: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/lemann-dara-maior-enfase-a-ensino-virtual-em-suas-fundacoes.shtml
Até mesmo a possibilidade de comprar com recursos públicos e sem licitação: https://cieb.net.br/como-viabilizar-compras-publicas-de-tecnologias-educacionais-em-tempos-de-pandemia/
Muitas são as pesquisas já realizadas por colegas nossos e por pesquisadores de outros países, que com certeza vocês conhecem, mostrando os mecanismos perversos de funcionamento desses modos de gestão, nos diversos níveis de ensino. A título de exemplo, estou socializando com vocês um texto que recebi uns dias atrás que mostra como muitas universidades públicas de EAD nos EUA fazem um tipo de terceirização dos cursos. Isto é, há empresas privadas atrás dos cursos públicos https://tcf.org/content/report/dear-colleges-take-control-online-courses/
Seria muito ingênuo pensar que nossa universidade pública esteja isenta de pressões de interesses empresariais.
Ainda que se ignorem essas ressalvas é, no mínimo, temerário afirmar que ‘todo o mundo aderiu à EAD’. Por exemplo, na Universidade de Maryland, onde fiz pós-doutorado, não há EAD. O mesmo acontece em outras universidades grandes e importantes dos EUA. Algumas têm um ou outro curso em EAD, mas nada significativo. Em vários países há universidades que ministram aulas exclusivamente à distância, como é o caso, nos EUA, da University of Maryland Global Campus (não confundir com a universidade de Maryland), ou da UNED, na Espanha (fundada em 1972). Naturalmente elas preenchem um espaço em matéria de educação. Mas é só isso.
Uma pesquisa rápida na internet permite observar que a maioria dos cursos a distância na Europa e nos EUA é oferecida principalmente (às vezes unicamente) por universidades privadas e/ou por universidades que existem unicamente on line.
Falácia 5:  a universidade pública pode oferecer EAD de excelência, sem discriminação
A educação formal (básica e universitária) tem, sem dúvida, uma série de problemas, mas nenhuma teoria pedagógica coloca em questão a importância do carácter presencial da educação na construção do vínculo professor-aluno.  Através de vídeo aula pode-se transmitir um conteúdo, uma informação, mas torna muito mais difícil criar um ambiente de trabalho coletivo de construção do conhecimento,  ajudar o estudante a criar uma disciplina de estudo, a focar e se concentrar no estudo, a sentir o prazer de apreender. Uma aprendizagem através do debate e, principalmente, da autonomia do professor para poder recriar, levando em conta os questionamentos dos alunos durante uma aula e/ou um curso, e ajudar o estudante a construir conhecimento.
Mas, tão importante quanto isso é lembrar que a construção do conhecimento na formação universitária não se restringe à sala de aula. A convivência universitária, as bibliotecas, as participações em órgãos de representação estudantil, em instituições colegiadas de gestão, em grupos de pesquisa são, entre outras vivencias, fundamentais no processo de formação dos jovens. A se destacar que, sem esse conjunto de atividades presenciais, na sala de aula e fora dela, a formação de uma juventude com pensamento crítico ficará extremamente prejudicada.
O prof. Paulo Blikstein e sua equipe especializada em tecnologia educacional com equidade, na universidade de Columbia, entre outros, avaliam que os resultados de aprendizagem por EAD são muito ruins, tanto na educação básica quanto na graduação. Por exemplo, nos EUA a EAD tem uma taxa de evasão de 95%. Também observaram que no caso de alunos de muito alto rendimento é indiferente se aprendem por EAD ou presencialmente. A questão surge com os estudantes de baixo ou muito baixo rendimento: a aprendizagem desses alunos na modalidade presencial é muito melhor do que em EAD.  https://www.youtube.com/watch?v=OfzW8e329qA
Falácia 6: O EAD não tem nada a ver com a saúde dos estudantes e docentes
Este tempo de pandemia mostra mais uma vez que ficar longos períodos frente ao computador realizando reuniões, aulas etc. tem prejudicado enormemente a postura corporal. Além disso, os fonoaudiólogos têm observado um aumento significativo da diminuição da audição nos adolescentes pelo uso de auriculares.  É só observar o aumento de lojas de venda de aparelhos auditivos, entrar numa delas e ver como o jovem tornou-se um consumidor importante para o qual se desenham modelos coloridos, fosforescentes etc.
Enfim, colegas docentes, considero fundamental que o tema EAD seja debatido de forma séria e bem fundamentada. Ou isso, ou estaremos desarmados ante as falácias dos que promovem a mercantilização da educação. E já que esta pandemia tem sido comparada a uma guerra, vale lembrar o dito popular: “Em tempo de guerra, mentira é como terra”.
 


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