Wilson Cano, um corinthiano


Professor Wilson Cano, na ADunicamp em 2019, durante a gravação do vídeo para a campanha “Em Defesa da Universidade Pública”


Na última sexta-feira, 3, faleceu o professor Wilson Cano, associado da ADunicamp e um dos fundadores do Instituto de Economia da Unicamp (IE). A ADunicamp se solidariza com amigos e familiares e, em homenagem ao grande mestre, pública o texto escrito pelo Professor Pedro Paulo Zaluth Bastos, também do IE:

Wilson Cano, um corinthiano

Por Pedro Paulo Zahluth Bastos
Muito se escreveu sobre Wilson Cano desde sexta. Três dias depois dei-me conta que nenhuma homenagem lembrou que era um corintiano doente desde antes da reforma ortográfica de 1943. O esquecimento também foi meu, quando ajudei a redigir a homenagem da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE) realçando, como se deve, sua contribuição mais duradoura ao autoconhecimento do Brasil: os três livros sobre a história e a estrutura das desigualdades regionais do capitalismo brasileiro. Atleticanos, flamenguistas, gremistas e outros torcedores não podem deixar de admitir que não há contribuição comparável, em escopo e estilo de jogo, nesse campo.
Sem bairrismo, as homenagens realçam o impacto positivo de seus gols, passes e lançamentos: quem pode negar que Wilson se esforçava como ninguém por seus alunos, orientandos e amigos, como se tivesse a Fiel berrando para lhe fazer suar e vibrando com um passe de calcanhar no Pacaembu? Seus companheiros de jogo eram contagiados, e mesmo os marcados e os marcadores admitem que seu jogo era franco, intenso e fiel como sua torcida.
Todos lembram que era um professor exigente na qualidade do retorno discente e no volume de carga de leitura e horas-aula (imaginem se não houvesse outras disciplinas na mesma semana, como alguns de seus colegas lhe lembravam no vestiário…). E ele retribuía sendo talvez o mais dedicado e prestativo dos docentes.
Os orientandos falam que ele os tirava da zona de conforto para que descobrissem seu potencial. Eufemismo para dizer que, às vezes, encarnava o Oswaldo Brandão (ou o Tite, para os mais novos) e pagava geral. Sem perder a ternura jamais. E funcionava, os jogadores atendiam ao “professor”, corriam mais depois da bronca e traziam a torcida toda para dentro do campo. Dava certo.
Seus colegas lembram seu papel construtor de várias gerações de times. O professor de Análise de Projetos, primeiro, e outras disciplinas em seguida nos cursos da Cepal de 1965 a 1980. Fundador da área de humanidades na Unicamp, isto é, do Departamento de Planejamento Econômico e Social, embrião do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas, que dirigiu entre 1976 e 1980. Construtor da Escola de Campinas, e concretamente do Instituto de Economia da Unicamp, onde criou e dirigiu vários centros de pesquisa. Apoiador da constituição do Instituto de Estudos da Linguagem e do Instituto de Geologia. Diretor de várias associações científicas (a ABPHE inclusive). Economista do MDB na luta contra a ditadura.
Só esqueceram de falar da Adunicamp, onde animou várias mesas de debate (como nesta contra o Golpe). Quando discordava, era duro, mas respeitoso e profundo, preferindo sempre o argumento substantivo ao grito da torcida. Não que não gostasse das controvérsias quase futebolísticas: no Bar da Coxinha, concordando ou não com o professor Alberto Lobão (IG), ele enumerava “carreiristas”, “de direita”, “neoliberais” e outros times depois do segundo copo. Quase sempre com razão.
Tive sorte de vê-lo jogando em várias posições com uma categoria de deixar outro polivalente Wilson (Mano, o jogador) com ciúme. Em 1990, era bibliografia de Formação Econômica do Brasil, clara no estilo, profunda e objetiva no recado. Em 1991, era o pai do Newton e do Marcelo, e bancava generosamente, com a Selma, aqueles churrascos na beira da piscina quintas à noite. Não conheci bem o caçula Eduardo, que nasceu pouco depois do glorioso ano de 1977. Talvez o mais feliz ano da vida de Wilson, o da publicação de seu primeiro livro e principalmente do fim de quase 23 anos de jejum naquele campeonato roubado da Ponte Preta. Quem conhece os filhos sabe da qualidade dos pais.
Depois, guia e companheiro de jornada política a partir de 1992, quando o saudoso Marco Aurélio Garcia resolveu formar nos sábados um grupo de economistas jovens do PT apoiado pelo Wilson e pelo Guido. Em 1993, o envolvimento com o PT-Campinas tinha uma meta clara: convencer Toninho a disputar a Prefeitura de Campinas em seminários quintas à noite, criar condições políticas para isso e elaborar um programa de governo se tudo desse certo. Para quem não sabe, a brilhante tese de Antônio da Costa Santos sobre a urbanização de Campinas foi orientada por Wilson.
Demorou, mas deu certo na eleição de 2000. Cobrou quando eu ia terminar a tese, que ele acompanhava informalmente junto com o Belluzzo, orientador. Queria que eu deixasse por um tempo a academia para integrar a equipe de assessoria no gabinete do Prefeito. Pediu nomes, mas já conhecia quase todos os membros daquela equipe de alta qualidade (Bráulio, Bura, Glauco, Lício, Tannuri), Claudio Maciel pelo Centro de Desenvolvimento. Dividi a sala com Wilson inclusive no dia seguinte ao assassinato político. Na manhã de 11 de setembro de 2001, o vi procurar o infinito pela janela e dizer “morreu um sonho”.
Pouco mais de um ano depois, abandonou o partido quando Pallocci assumiu o comando da economia. Na época alguns diziam que ele não tinha paciência. Difícil dizer isso de quem esperou quase 23 anos em jejum fiel. Ele tinha é faro. E o olhar de quem se acostumou a entender sistemas histórico-estruturais, sua dinâmica e seus limites. Ou será quem alguém ainda defende o Pallocci e suas escolhas?
Wilson dizia que ia dar errado bem lá atrás, e continuou dizendo mesmo nos momentos de euforia, embora reconhecesse e louvasse, como seu mestre Celso Furtado, a melhoria de vida dos brasileiros que passaram a acreditar que não morreriam mais de fome, de doença banal ou analfabetos. Certamente torcia para que as esquerdas não precisassem esperar 23 anos para ter nova chance de corrigir os erros, inclusive porque sabia que os erros da direta são muito maiores ou, pior ainda, nem erros são (para eles).
Até hoje ensino na graduação o programa introdutório a Desenvolvimento Econômico-Social que ele cortou e refinou, com martelo, em 2011. A bibliografia é quase a mesma, um pouco maior agora porque, na graduação, ele sugeria mais densidade que volume. Flamenguista teimoso, estou me convencendo do acerto do conselho aos poucos. Último novembro, fiquei feliz porque gostou do primeiro capítulo de meu esboço sobre o pensamento da Escola de Campinas, mas chateado porque não conversamos depois sobre isso como combinado. Ficou para depois do carnaval.
Infelizmente as circunstâncias exigiram uma despedida restrita aos familiares. Não pudemos fazer a celebração da vida como no adeus ao grande amigo Antônio Carlos Oliveira, sociólogo botafoguense com quem Wilson concordava até no gosto musical. Nosso consolo é que Wilson teve a sorte de uma vida plena. Ontem li que os dançarinos de caixão em Gana são o reflexo espetacular de uma tradição secular de celebração da vida na hora da morte. Se o acaso ocorre quando o sujeito é novo e ainda não realizou seu potencial, não há dança, e os parentes e amigos trajam vermelho e preto (acho que deve ter uma faixa branca para ficar tricolor). Caso contrário, vestem-se alvinegros. Nesse caso, justa coincidência.


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