COMO EM TEMPOS DA DITADURA MILITAR – DESAPARIÇÃO FORÇADA DE PESSOA NO GOVERNO MACRI


Divulgação realizada por solicitação dos professores María Rosa Navarro e Mario Antonio Gneri, na condição de sindicalizados. O conteúdo do texto não reflete necessariamente a posição da ADunicamp, de sua Diretoria ou de qualquer outra instância da entidade. Toda e qualquer responsabilidade por afirmações e juízos emitidos cabe unicamente ao autor do texto.
 
Santiago Maldonado, artesão bonaerense radicado na província de Chubut, “desapareceu” no dia 1o de agosto em mãos da Gendarmería Nacional (polícia de fronteira), em operativo repressivo contra um ato organizado pelo grupo Resistencia Ancestral Mapuche (RAM). O RAM reivindica para a etnia mapuche uma pequeníssima parte das terras hoje em posse do grupo empresarial Benetton. A manifestação exigia a liberação do líder da RAM Facundo Jones Huala, detido em julho deste ano e cuja extradição é solicitada por Chile.
O local da desaparição e os veículos utilizados na repressão foram “limpados” pela mesma Gendarmería. A procura de Santiago e a investigação do ocorrido pelos organismos oficiais é apenas formal. Organismos de defesa dos direitos humanos, de longa trajetória de denuncia das iniqüidades da ditadura militar (entre outros Asamblea Permanente por los Derechos Humanos, Centro de Estudios Legales y Sociales, Abuelas e Madres de Plaza Mayo, Liga por los Derechos del Hombre e outros)  são caricaturizados pelo governo e a mídia cúmplice como defensores de marginais, delinqüentes ou subversivos.
A responsabilidade atinge ao próprio presidente, dado que o operativo foi dirigido pessoalmente por Pablo Noceti,  chefe de gabinete da Ministra de Seguridad de la Nación,  Patricia Bullrich. O local do operativo dista a mais de 1.400 km da cidade de Buenos Aires em linha reta.
Noceti afirmou que “extremistas kurdos” e pessoas ligadas ao governo anterior teriam se infiltrado no movimento reivindicativo dos mapuches. Também responsabiliza ao prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel (!!).  Campanhas midiáticas tentam vender também a idéia de que os mapuches têm conexões com a ETA e as FARC. Publicações de tom xenófobo chamam depreciativamente os mapuches de “chilenos”.
Pablo Noceti, que anunciou que iria deter os responsáveis pelo movimento mapuche sem intervenção judicial, ostenta no seu currículo a defesa dos repressores da ditadura militar, tendo afirmado que o julgamento dos responsáveis pela desaparição forçada de pessoas durante a mesma era vingança e não justiça.
No programa televisivo  “Minuto 1“, no dia 23 de agosto, Jorge Schulman, representante da Liga por los Derechos del Hombre,  disse que dois integrantes do Ministerio de Seguridad (“especialistas” segundo apresentação feita pela ministra Bullrich) afirmaram que Santiago Maldonado “era miembro de las FARC y que estuvo en la Patagonia para cumplir algún rol para la organización. Ahora estaria prófugo“.
A ministra Patricia Bullrich, que em pronunciamento ao Senado entregou com todas as letras o nome de uma testemunha protegida do caso Santiago Maldonado , considera a desaparição de Santiago como “búsqueda de persona extraviada“. Entretanto,  a fiscal Silvina Ávila, a cargo da investigação do caso, solicitou ao juiz que a causa seja caracterizada comodesaparición forzada de persona”. 
Também, em 23 de agosto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos * (CIDH) outorgou una medida cautelar para “proteger” os diretos de Santiago Maldonado. Além disto reclamou ao governo que “informe sobre las acciones adoptadas a fin de investigar los presuntos hechos que dieron lugar a la adopción de la presente medida cautelar“, exigindo também ao governo Macri que “adopte las medidas necesarias para determinar la situación y paradero de Santiago Maldonado, con el fin de proteger sus derechos a la vida e integridad personal“.
Na sexta feira 01/09, a um mês da desaparição de Santiago Maldonado, se fizeram atos em Buenos Aires e em todas as capitais provinciais pela aparição com vida de Santiago. Em Buenos Aires houve mais de 250.000 manifestantes. Grupos para-policiais  realizaram quebra-quebra inclusive atacando uma mutual da Gendarmería com bomba molotov (“mutual” não é quartel, é um local de atendimento médico). Era um grupo de umas 50 pessoas, todas  vestidas de negro, mascaradas e com o mesmo calçado (!). Gritavam “uno, uno, uno ….”,  uma contra-senha para que as forças encarregadas da repressão os reconhecessem e não os prendessem. Obviamente ninguém deste grupo foi preso. Alguns manifestantes e pessoas que passavam pelo local foram presas e ficaram in-comunicadas por mais de dois dias (de 6a à noite a 2a de manhã). Deve ter tido uma ordem de encher os camburões com pessoas a fim e culpar aos manifestantes pelas quebradeiras. A manifestação era absolutamente pacífica até o começo do quebra-quebra, havia até  famílias com suas crianças.
Após um mês de ocorrida a desaparição forçada, Elisa Carrió, que integra a frente Cambiemos de Macri e é a mais forte candidata a ganhar as eleições de outubro em Capital Federal, não quer correr riscos. Por isto sentira-se na obrigação de exigir (timidamente, com idas e voltas) ao governo esclarecimentos sobre a desaparição.
O “juzgado federal” de Esquel informou que as amostras  genéticas tomadas dos veículos da Gendarmería não são compatíveis com o ADN extraído dos pais e irmão  de Santiago Maldonado. O defensor oficial tinha advertido que os veículos que a Gendarmería utilizou na repressão aos mapuches tinham sido lavados previamente às investigações.
O juiz Otranto, responsável pela causa, convocou os gendarmes como testemunhas e não como indagados.
Segundo a versão on line do jornal Página 12 de 12/09, a 43 dias da desaparição de Santiago surge a seguinte versão: um efetivo identificado como Neri Armando Robledo, de 27 anos, haveria golpeado com uma pedra a um manifestante que intentava atravessar o rio. O Governo procura se afastar da figura da desaparição forçada, que implica a atuação de toda a força, e semear hipotético homicídio culposo sob o jargão policial: ‘se le fue la mano’ ”.
O periodista Lanata, partidário do governo,  tinha dito com todas as letras há umas duas semanas no seu programa televisivo: “La hipótesis, digo, una de las hipótesis  es que lo ‘cagaron a palos’ y ‘se les fue la mano’. Ojo, en este caso sería asesinato y no desaparición forzada”.
Além disso notícias recentes, aparecidas a mais de 40 dias da desaparição, no 1o de agosto, afirmam que Santiago seria um expert em certa arte marcial não muito conhecida e cujo nome no lembramos.
Na época da ditadura existia uma imponente infra-estrutura repressiva, consistente em diversos campos de tortura e extermínio, os denominados “”chupaderos”, de onde também se direcionava às vítimas para serem jogadas no Rio de la Plata. Esta estrutura – por enquanto – inexiste no governo Macri. Mas há uma característica em comum com os começos da desaparição forçada de pessoas na Argentina dos anos 70: o comportamento homogêneo do governo negando a desaparição forçada, inclusive com a colaboração do poder judiciário.
Este comportamento, aliado à irrupção nas  manifestações massivas de grupos para-policiais ou para-militares promovendo quebradeiras, causa profunda apreensão. Começam a ser utilizados com profusão os adjetivos “subversivo”, “extremista” e “terrorista” nos meios de comunicação massiva, como na época da ditadura.
A presença nos anos 70 das organizações armadas justificou,  para parte da população, a existência da estrutura repressiva. Como hoje não ha guerrilha, o governo precisa inventá-la. Daí as tentativas ridículas de ligar Santiago Maldonado a ETA, às FARC, ISIS ….
Haverá sem dúvidas novas manifestações, não apenas por Santiago, mas também pelas reformas econômicas introduzidas e as que virão após as eleições de outubro. O governo necessita imperiosamente impedir as manifestações para que estas não entrem num crescendo. Não será suficiente a repressão “legal”. Depredadores mascarados reaparecerão em uma escalada de violência e provavelmente as próximas molotov sejam jogadas encima de pessoas, quanto mais inocentes melhor, para mostrar quão maus são os “subversivos”. Serão atos de verdadeiro terrorismo de estado, como na época da ditadura. O objetivo será apagar todo tipo de resistência e colocar em vigor legislação antiterrorista para enquadrar nela todo tipo de oposição.
Entretanto no devemos desistir da imediata luta pela aparição de Santiago Maldonado. Repetindo palavras de ordem que vem sendo utilizadas desde a época da ditadura e que infelizmente continuam atuais, dizemos:
APARICIÓN CON VIDA Y CASTIGO A LOS CULPABLES!
* A CIDH é órgão autônomo da OEA, cujo mandato surge da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Tal mandato consiste em promover a observância e a defesa dos direitos humanos na região. Atua como órgão consultivo da OEA na matéria.
Seguem cinco apêndices. Os dois primeiros são:
1) Artigo 75, Inciso 17 da Constituição Argentina, que trata das populações indígenas;
2) Moção aprovada pelo 38 Congresso do ANDES-SN a respeito do conflito entre mapuches e Benetton em janeiro deste ano (o início do conflito precede à desaparição de Santiago Maldonado, ocorrida em 01-08-2017).
Nos três últimos apêndices constam alguns antecedentes históricos:
3) Os mapuches;
4) “La conquista del desierto“;
5) O destino das terras após a “conquista”.
 
Apêndice 1: Constituição Argentina, Artigo 75, Inciso 17
Redação atual, conforme a reforma de 1994:
“Reconocer la preexistencia étnica y cultural de los pueblos indígenas argentinos. Garantizar el respeto a su identidad y el derecho a una educación bilingüe e intercultural; reconocer la personería jurídica de sus comunidades, y la posesión y propiedad comunitarias de las tierras que tradicionalmente ocupan; y regular la entrega de otras aptas y suficientes para el desarrollo humano; ninguna de ellas será enajenable, transmisible, ni susceptible de gravámenes o embargos. Asegurar su participación en la gestión referida a sus recursos naturales y a los demás intereses que los afectan. Las provincias pueden ejercer concurrentemente estas atribuciones.”
 
Apêndice 2: moção aprovada no 38 Congresso do ANDES-SN,
Los  delegados presentes en el 36o CONGRESO del ANDES-SN, realizado en Cuiabá/MT, en el período de 23 a 28 de enero de 2017, manifiestan su repudio a la brutal represión del pueblo mapuche por parte de la Gendarmería de y la policía de la Provincia de Chubut, en el marco del reclamo de los pobladores de tierras ancestrales actualmente en disputa con el grupo empresarial Benetton.
LIBERTAD  A  LOS  PRESOS  POLÍTICOS  DEL  PUEBLO  MAPUCHE
FUERA  LA  BENNETON  DEL  TERRITORIO  MAPUCHE
Cópias desta moção foram enviadas  ao Presidente da República Argentina, Ing. Mauricio Macri e ao governador da Província de Chubut,  Sr. Mario das Neves:
 
Apêndice 3: Os mapuches
Os mapuches, denominados araucanos pelos espanhóis, ocupavam  antes da chegada dos europeus a América território correspondente às atuais províncias argentinas de San Juan, Mendoza, Neuquén, Río Negro y Chubut (enumeradas de norte a sul, todas elas encostadas na Cordilleira dos Andes). Também ocupavam os territórios ao sul de Coquimbo do atual Chile.
 
Apêndice 4: “La conquista del desierto
Entre 1878 e 1885 teve lugar na Argentina a denominada “conquista del desierto“, eufemismo pelo genocídio dos povos indígenas que ocupavam a lhanura pampeana e a Patagonia, fundamentalmente mapuches, tehuelches e ranqueles. A “conquista” consistiu em matança, destruição de assentamentos e apresamento da população indígena. Os presos foram utilizados para trabalho forçado (a pesar de a escravidão ter sido abolida em 1813) ou confinados em verdadeiros campos de concentração. Sempre separando homens de mulheres para evitar a reprodução. Crianças foram “doadas”. Nos “traslados” muitos foram obrigados a andar centenas de quilômetros, relatos afirmam que os que caiam eram mortos. Muitos foram levados desde a Patagonia à província de Tucumán, no norte argentino, de clima totalmente diferente ao patagônico, para trabalhar na colheita de cana de açúcar. Os documentos da época falam de conflito  entre os “argentinos” e os “indios“.
Martín Rodríguez, governador da província de Buenos Aires,  já afirmava na década de 1820, referindo-se aos indígenas: “primero exterminaremos a los nómades y luego a los sedentarios“.
Em 19 de outubro de 1875, pouco antes da “conquista”, o general Julio Argentino Roca, que seria o comandante da mesma,  manifesta ao presidente Avellaneda sua proposta com as seguintes palavras: “A mi juicio, el mejor sistema para concluir con los indios, ya sea extinguiéndolos o arrojándolos al otro lado del río Negro, es el de la guerra ofensiva que fue seguida por Rosas que casi concluyó con ellos…” ​
Nos dias 16 e 17 de novembro de 1878 o jornal conservador La Nación,  dirigido pelo ex-presidente Bartolomé Mitre (que era favorável à campanha militar), publicou um artigo sobre a matança de 60 indígenas desarmados por tropas argentinas a mando do coronel Rudecindo Roca (irmão do comandante da “conquista”, general Julio Argentino Roca) qualificando o ato como “crimen de lesa humanidad” e de não respeitar “las leyes de la humanidad ni las leyes que rigen el acto de la guerra“.
Em 19 de agosto de 1880 o deputado nacional Aristóbulo del Valle (que seria um dos fundadores do partido Unión Cívica, depois  Unión Cívica Radical) afirmou na Câmara de Deputados:
Hemos tomado familias de los indios salvajes, las hemos traído a este centro de civilización, donde todos los derechos parece que debieran encontrar garantías, y no hemos respetado en estas familias ninguno de los derechos que pertenecen, no ya al hombre civilizado, sino al ser humano: al hombre lo hemos esclavizado, a la mujer la hemos prostituído; al niño lo hemos arrancado del seno de la madre, al anciano lo hemos llevado a servir como esclavo a cualquier parte; en una palabra, hemos desconocido y hemos violado todas las leyes que gobiernan las acciones morales del hombre.
Em 1883 o jornal La Prensa considerou que manter prisioneiros aos indígenas constituía uma violação de seus direitos constitucionais e reclamava que se utilizara o habeas corpus para liberá-los. Em 20 de março de 1885 o jornal El Nacional exigia que o estado argentino deixa-se de realizar “repartos” de “chinas” (ou seja, das indígenas), qualificando o fato como “acto de barbarie“.
Entretanto no Chile, desde meados do século XIX um objetivo central da incipiente república foi a expansão da fronteira austral para além do rio Bio-Bio e a incorporação do território mapuche. A intervenção militar que ficou conhecida como “a pacificação da Araucania” durou 21 anos (1862-1883) incorporou a totalidade do território mapuche, ocasionando a morte de milhares de indígenas e a pilhagem dos bens dos sobreviventes.
Muitos estudiosos argentinos e não argentinos realizaram investigações e concluíram que “la Conquista del Desierto” constituiu um verdadeiro genocídio, entre eles Jens Anderson, Ward Churchill, Walter Delrio, ​ Diana Lenton, ​ Marcelo Musante, ​ Equipo Mapuche Werken, Felipe Pigna e Osvaldo Bayer.
Por outro lado, Juan José Cresto e Roberto Azzareto são  historiadores argentinos que sustentam que não houve  genocídio. Os argumentos mais utilizados são:

  1. i) a palavra genocídio surgiu no século XX, associada ao massacre do povo judeu e outros pelos nazistas e portanto constituiria anacronismo aplicá-la a fatos sucedidos no século XIX;
  2. ii) falta de documentação;

iii) nos enfrentamentos entre 1820 e 1880 teria havido mais mortos “argentinos” que “indígenas”;

  1. iv) parte dos guerreiros indígenas foram recrutados nas forças armadas ou enviados a trabalhar na colheita da cana de açúcar na província de Tucumán;
  2. v) qualificação de Nicolás Avellaneda, presidente em exercício na época da “conquista”, como “humanista” incapaz de permitir um genocídio;
  3. vi) na Argentina não se criaram reservas indígenas porque o governo pretendia integrar os indígenas a “la sociedad argentina“;

vii) alguns caciques tornaram-se coronéis do exército;
 
Apêndice 5: O destino das terras
Finalizada a “conquista del desierto” em 1885, iniciou-se o processo de  reparto das terras que hoje fazem parte das províncias de Buenos Aires, sul de Córdoba, San Luis e Mendoza (antigas) e das novas criadas a partir da “conquista”: Neuquén, Río Negro, Chubut e Santa Cruz.
O estado argentino doou grande parte destas terras a diversas companhias  inglesas que começavam a operar dentro do país. Somente em Chubut foram doadas mais de 2.300.000 hectares. Grande parte das terras foram administradas por um fundo de inversão denominado “Compañía de tierras del Sud Argentino“.
No livro Ese ajeno Sur, Ramón Minieri cuenta que “La Compañía”- como solia ser conhecida – “explotó esas tierras durante casi un siglo en condiciones excepcionalmente favorables: pudo producir, importar, exportar y obtener utilidades, sin tener que pagar durante años derechos aduaneros ni otra clase de tasas, o beneficiándose con tipos de cambio preferenciales y aranceles reducidos”.
Em 1975 a firma “Great Western”, pertencente a latifundiários argentinos, comprou o  pacote acionário de  “La Compañía”. Em 1991, sob o governo Menem, o grupo Benetton comprou (a  través do seu holding internacional Edizione) quase 900.000 hectares, 98% das quais  localizadas na províncias de Santa Cruz, Chubut, Río Negro, Neuquén e Buenos Aires. O grupo Benetton dedica-se principalmente à produção de lã, mas nas terras existe uma jazida de petróleo (Vaca Muerta), que também se encontra em disputa territorial.


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