Lei 13.243/16 (ex-PLC 77/15) desvirtua setor público de C&T e expande a privatização


Artigo publicado originalmente no Informativo da Adusp Nº413
Mais uma vez, com estardalhaço, o governo legisla sobre o setor de ciência e tecnologia (C&T) com propósito não de prover o necessário financiamento do setor, e sim de criar mecanismos que desobrigam o Estado. Assim é que a recém sancionada lei 13.243/2016 modifica os principais instrumentos legais editados a partir dos anos 1990, de modo a permitir que a já insuficiente estrutura pública de C&T do país — fundamentalmente constituída pelas universidades públicas federais e estaduais e por algumas instituições públicas de pesquisa — seja integralmente apropriada por empresas e interesses privados nacionais e estrangeiros*.
Mais uma vez os reais entraves para o desenvolvimento do setor são flagrantemente escamoteados, deixando-se de implementar políticas tributárias que permitam o controle da administração pública sobre parcela do Produto Interno Bruto (PIB) que seja compatível com as responsabilidades de um Estado voltado para o desenvolvimento social e político-cultural da população (“inclusão social”) e para a soberania nacional. Entre tais responsabilidades se inclui o devido financiamento da educação em todos os níveis e da pesquisa científica básica em todas as áreas.
Há décadas o setor de C&T recebe financiamento inferior a 0,5% do PIB nacional, enquanto o patamar aceitável seria algo em torno de 2% do PIB, vide por exemplo as referências da Unesco a respeito. Ao invés de resolver o problema do subfinanciamento, ou ao menos providenciar qualquer política emergencial que garanta mais recursos ao setor, o governo toma medidas para caracterizar as universidades, órgãos e institutos públicos de pesquisa como “Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação” (ICT), agora sujeitas a ceder infraestrutura e recursos humanos a empresas, organizações e projetos privados, ampliando-se assim a já nefasta e proeminente atuação de entidades privadas no interior destes organismos: as autoconstituídas e autodeclaradas “fundações de apoio”**.
É o que estipula o artigo 2º da lei 13.243/2016, ao dar nova redação à lei 10.973/2004: inciso I do § 2º do artigo “3º-B”, a saber:
Art. 3º-B A União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as respectivas agências de fomento e as ICTs poderão apoiar a criação, a implantação e a consolidação de ambientes promotores da inovação, incluídos parques e polos tecnológicos e incubadoras de empresas, como forma de incentivar o desenvolvimento tecnológico, o aumento da competitividade e a interação entre as empresas e as ICTs. […]
§ 2º Para os fins previstos no caput, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as respectivas agências de fomento e as ICTs públicas poderão:
I – ceder o uso de imóveis para a instalação e a consolidação de ambientes promotores da inovação, diretamente às empresas e às ICTs interessadas ou por meio de entidade com ou sem fins lucrativos que tenha por missão institucional a gestão de parques e polos tecnológicos e de incubadora de empresas, mediante contrapartida obrigatória, financeira ou não financeira, na forma de regulamento.
Vai mais adiante o “Art. 19” da nova redação da lei 10.973/2004, conforme o artigo 2º da lei 13.243/2016, a pretexto de “atender às prioridades” da política industrial brasileira. Vejamos:
Art. 19. A União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as ICTs e suas agências de fomento promoverão e incentivarão a pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços e processos inovadores em empresas brasileiras e em entidades brasileiras de direito privado sem fins lucrativos, mediante a concessão de recursos financeiros, humanos, materiais ou de infraestrutura a serem ajustados em instrumentos específicos e destinados a apoiar atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, para atender às prioridades das políticas industrial e tecnológica nacional.
Ainda na nova redação dada à lei 10.973/2004, as possibilidades de transferência de recursos públicos ao capital privado são explicitadas, ampliadas e aprofundadas mediante as modificações introduzidas pelos incisos I e II do “artigo 4º”, constantes do mesmo artigo 2º da lei 13.243/2016:
Art. 4º A ICT pública poderá, mediante contrapartida financeira ou não financeira e por prazo determinado, nos termos de contrato ou convênio: I – compartilhar seus laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações com ICT ou empresas em ações voltadas à inovação tecnológica para consecução das atividades de incubação, sem prejuízo de sua atividade finalística;
II – permitir a utilização de seus laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações existentes em suas próprias dependências por ICT, empresas ou pessoas físicas voltadas a atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, desde que tal permissão não interfira diretamente em sua atividade-fim nem com ela conflite.
Note-se que a contrapartida a ser oferecida à ICT pública, pela organização privada que “compartilhará” os “laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações”, e deles fará uso, é “financeira ou não financeira”. Ou seja: não haverá necessidade de remuneração pelo usufruto de tais bens públicos, o que abre enorme campo para a apropriação pura e simples do patrimônio público por grupos privados. Que significa, exatamente, “contrapartida não financeira”? Definição tão vaga abre margem para todo tipo de abuso.
Da mesma forma, a ressalva prevista no inciso II, de que o uso dos laboratórios e demais bens ocorrerá “desde que tal permissão não interfira diretamente em sua atividade-fim nem com ela conflite”, é frouxa o bastante para dar margem a apreciações subjetivas do dirigente da ICT que autorizar a cessão. Basta repassar a trajetória de décadas das fundações privadas ditas “de apoio” para constatar quão implacável é o processo de “colonização” dos entes públicos supostamente “apoiados” por elas, bem como a paulatina subordinação do público ao privado, por elas operada.

“Capital intelectual”

Por fim, o inciso III do “artigo 4º” da lei 10.973/2004 passa a ter a seguinte redação: permitir o uso de seu [da ICT pública] capital intelectual em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Conforme explica a nova redação dessa mesma lei, no “artigo 2º”, inciso XIV (segundo dispõe o artigo 2º da lei 13.243/16), a expressão “capital intelectual” define “conhecimento acumulado pelo pessoal da organização, passível de aplicação em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação”!
Desse modo, para garantir e facilitar a cessão, ao capital privado, desse “conhecimento acumulado” (gerado, ao longo de décadas, por pesquisadores contratados pelo poder público, atuantes em instituições públicas financiadas por fundos públicos), a nova legislação coloca à inteira disposição de grupos de interesse privados — sejam eles “Organizações Sociais”, fundações ditas “de apoio” (qualificadas ou não como OS), ou empresas — o quadro permanente de funcionários públicos do setor, permitindo e incentivando que complementem seus salários através dessa atuação.
Mais que isso, os obriga a atender esse tipo de demanda: vide §6º do “Artigo 6º” da lei 10.973/2004, como disposto no artigo 2º da lei 13.243:
Art. 6º É facultado à ICT pública celebrar contrato de transferência de tecnologia e de licenciamento para outorga de direito de uso ou de exploração de criação por ela desenvolvida isoladamente ou por meio de parceria. […] § 6º Celebrado o contrato de que trata o caput, dirigentes, criadores ou quaisquer outros servidores, empregados ou prestadores de serviços são obrigados a repassar os conhecimentos e informações necessários à sua efetivação, sob pena de responsabilização administrativa, civil e penal, respeitado o disposto no art. 12.
Portanto, por mais espantoso que possa parecer, se determinado pesquisador, como funcionário público exemplar e guiado pela ética do serviço público, vier por qualquer motivo a resistir à perversa apropriação de patrimônio público imaterial — na forma de processos, pesquisas, conhecimentos — por interesses privados nacionais ou estrangeiros, apropriação essa prevista, pretendida e legitimada no novo “Marco Legal de C&T”, correrá o risco de ser processado criminalmente, como determina de forma cristalina o § 6º acima transcrito. (O artigo 12 da lei 10.973/2004, citado no dispositivo, veda “a dirigente, ao criador ou a qualquer servidor, militar, empregado ou prestador de serviços de ICT divulgar, noticiar ou publicar qualquer aspecto de criações de cujo desenvolvimento tenha participado diretamente ou tomado conhecimento por força de suas atividades, sem antes obter expressa autorização da ICT”).
Assim, o “Marco Legal de C&T”, em vista do já avançado quadro de privatização interna das universidades públicas e dos institutos públicos de pesquisa, bem como da desvalorização salarial vigente, torna essas instituições e seus servidores presas fáceis para o avanço do “mercado” — e estrangula, ainda mais, a capacidade pública de efetivamente produzir C&T de qualidade e formação acadêmica robusta, ingredientes indispensáveis para o desenvolvimento de qualquer sociedade ao longo do tempo.
Diante da atual escassez de recursos e falta de quadros administrativos em número e grau de preparo adequado para as funções de gestão e controle, as parcas e pontuais exigências presentes no texto da lei 13.243/16, de “atendimento às atividades finalísticas” e “normas” da instituição pública sinalizam pura retórica. Caso do “Art. 4º” citado acima, ou do trecho final do “Art. 5º”, no artigo 2º: “Art. 5º São a União e os demais entes federativos e suas entidades autorizados, nos termos de regulamento, a participar minoritariamente do capital social de empresas, com o propósito de desenvolver produtos ou processos inovadores que estejam de acordo com as diretrizes e prioridades definidas nas políticas de ciência, tecnologia, inovação e de desenvolvimento industrial de cada esfera de governo.
Toda essa tremenda manobra legal destinada a transferir recursos públicos para interesses privados se dá em nome de favorecer o impreciso e questionável objetivo da “inovação”, tanto mais duvidoso quanto se sabe que tal conceito está relacionado ao setor produtivo e ao capital, não sendo e não devendo ser finalidade das instituições científicas públicas, universitárias ou não. Isso fica claro, por exemplo, no “Art. 15-A” presente no artigo 2º da nova legislação:
Art. 15-A. A ICT de direito público deverá instituir sua política de inovação, dispondo sobre a organização e a gestão dos processos que orientam a transferência de tecnologia e a geração de inovação no ambiente produtivo, em consonância com as prioridades da política nacional de ciência, tecnologia e inovação e com a política industrial e tecnológica nacional.
Tais previsões se encontram no bojo de dispositivos legais que se destinam justamente a desvirtuar o caráter público e as finalidades específicas das universidades e institutos de pesquisa, com o propósito confesso de direcioná-las para a promoção de algo tão insólito como o que se tem por “inovação”!
Na lógica descompromissada dos governos há muito tem sido assim nessas plagas: a solução para o devido financiamento da educação e do desenvolvimento científico está sempre colocada como miragem. A partir do final da década anterior eram os recursos do “Pré-Sal” vislumbrados para 2020 e que agora se sabe nada promissores; agora, é o potencial mágico da “inovação”.
Portanto os setores que se beneficiam da falta sistemática de políticas tributárias — financeiro, grandes proprietários urbanos e rurais, grandes fortunas etc. — continuam comodamente fora da berlinda e das metas dos discursos oficiais. Por que será?
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*Sobre o capital estrangeiro, vide “artigo 3º-C” da nova redação da lei 10.973/2004, conforme o artigo 2º da lei 13.243/2016: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estimularão a atração de centros de pesquisa e desenvolvimento de empresas estrangeiras, promovendo sua interação com ICTs e empresas brasileiras e oferecendo-lhes o acesso aos instrumentos de fomento, visando ao adensamento do processo de inovação no País.”
**Vide tudo que a Adusp vem publicando desde 2000 a respeito, disponível em www.adusp.org.br. Vide também o “Art. 20-A”, que confere nova redação à lei 12.772/12, no artigo 10º da lei 13.243/16: “Sem prejuízo da isenção ou imunidade previstas na legislação vigente, as fundações de apoio às Instituições de Ensino Superior e as Instituições Científica, Tecnológica e de Inovação (ICTs) poderão remunerar o seu dirigente máximo que:
I – seja não estatutário e tenha vínculo empregatício com a instituição;
II – seja estatutário, desde que receba remuneração inferior, em seu valor bruto, a 70% (setenta por cento) do limite estabelecido para a remuneração de servidores do Poder Executivo federal.


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