PL 4.330/04: desmascaramento e enfrentamento

Jorge Luiz Souto Maior*
1. Desmascaramento
Não se pode atribuir alguma razão, mínima que seja, àqueles que ora defendem a aprovação do PL 4.330/04, pois todos os argumentos que utilizam são falaciosos, ideológicos, visando escamotear as suas reais motivações.
Vejamos a fragilidade dos argumentos utilizados em defesa do PL.
a) “Modernização”
Diz-se que a terceirização é técnica moderna do processo produtivo, quando, em verdade, o que chamam de terceirização não é nada além do que a intermediação de mão-de-obra que já existia nos momentos iniciais da Revolução Industrial, e cujo reconhecimento da perversidade gerou, na perspectiva regulatória corretiva, a enunciação do princípio básico do Direito do Trabalho de que “o trabalho não deve ser considerado como simples mercadoria ou artigo de comércio” (Tratado de Versalhes, 1919), do qual adveio, inclusive, a criminalização, em alguns países como a França, da “marchandage”, ou seja, da intermediação da mão-de-obra com o objetivo de lucro. O próprio conceito de “subordinação jurídica” é uma construção teórica forjada para superar o obstáculo obrigacional advindo da formalização de contratos entre tomadores de serviços e prestadores de serviços, de modo a atribuir, em concreto, responsabilidades jurídicas ao capital que efetivamente se vale da exploração final da força de trabalho (“subordinação estrutural”, atualizada para “subordinação reticular”).
Cumpre acrescentar que o argumento retórico em torno da “modernidade” nos acompanha, na realidade brasileira, há várias décadas[1], valendo lembrar que esteve presente quando se aniquilou com a estabilidade no emprego, em 1967, substituindo-a pelo FGTS, bem como quando se instituíram o trabalho temporário, em 1974, o contrato do vigilante, em 1984, a terceirização, em 1993, as cooperativas de trabalho, em 1994, o banco de horas, em 1998, o contrato provisório, em 1998, o contrato a tempo parcial, em 1999…
O que ocorre é que a redução de direitos obviamente não gera o efeito concreto da melhora da economia e sem a revelação do embuste de foi vítima a classe trabalhadora novas reivindicações de retração de direitos acabam sendo propostas e, pior, com o mesmo argumento da “necessidade de modernização”.
b) “Preserva direitos trabalhistas”
Diz-se que os direitos trabalhistas, previstos na CLT e na legislação em geral, serão todos garantidos no regime de contratação da PL 4.330/04. Em outras palavras, que a terceirização não significará a retirada de direitos.
Ora, as pessoas e instituições que defendem a ampliação da terceirização com essa afirmação são exatamente as mesmas que até dias atrás se valiam dos argumentos retórica e historicamente construídos de que os direitos trabalhistas foram outorgados por Vargas sem que houvesse uma necessidade real para tanto, de que são excessivos e de que impedem o desenvolvimento econômico. Não se pode, pois, atribuir qualquer crença ao fato de que estejam, agora, de fato, preocupadas em fazer valer as leis trabalhistas. Ademais, a realidade das relações de trabalho no Brasil é a da completa ineficácia da legislação, a qual, portanto, só existe no papel, e isto se dá exatamente por obra dessas mesmas pessoas e instituições, que têm se valido de todos os ardis possíveis para negar a aplicação de direitos aos trabalhadores. Assim, seria no mínimo ingênuo se deixar levar pela promessa de que por conta da terceirização, que fragiliza a classe trabalhadora, essa realidade seria, como passe de mágica, alterada. É evidente, pois, que a ampliação da terceirização se insere na estratégia dessa gente de suprimir os direitos trabalhistas.
c) “Gera empregos”
Para defender o PL 4.330/04 tenta-se vender a ideia de que a terceirização seria instrumento de estímulo ao emprego. Ora, cabe frisar, em primeiro lugar, que quando se fala em terceirização não se está tratando de emprego, mas de subemprego, quando não de trabalho em condições de semi-escravidão. Então, na essência, a terceirização no máximo poderia aumentar os postos de trabalho nessas condições, sendo que como em concreto não é a forma como se regulam as relações de trabalho que impulsiona a economia, mas a dinâmica da produção e da circulação de mercadorias, o que se verificaria com a ampliação da terceirização seria apenas a transformação dos atuais empregos em subempregos, de modo, inclusive, a favorecer o processo de acumulação do capital e até da evasão de divisas, vez que o grande capital está sob domínio de empresas estrangeiras.
E ainda que se pudesse conceber algum benefício para a economia com a redução dos direitos trabalhistas e mais propriamente com a redução da participação do trabalho no produto interno bruto, o que se aceita apenas como mera hipótese argumentativa, mesmo assim a proposição seria indefensável, na medida em que o preço a ser pago pelos trabalhadores seria alto demais. Concretamente, qual o interesse na preservação de um modelo de sociedade que para se sustentar impõe sacrifícios exatamente àqueles que produzem as riquezas, mantendo uma parcela bem pequena da sociedade, incluindo os que se integram à burocracia de Estado, em situação economicamente bastante confortável? Preconizar a redução de ganhos dos trabalhadores como forma de salvar a economia, sem redução proporcional dos ganhos das empresas, dos diretores, acionistas e burocratas do Estado, é antes de tudo ofensivo, além de ser economicamente ineficaz.
De todo modo, é oportuno verificar esse argumento, que admite a existência da sociedade do trabalho, da essencialidade do trabalho para a estabilização e o desenvolvimento do modelo de produção capitalista e das potencialidades desse modelo de criar emprego, com garantias jurídicas, e não apenas trabalho, sem qualquer proteção, integrado à fala daqueles que até dias atrás diziam que o trabalho não existe mais, que estávamos vivendo a sociedade do fim do trabalho, sendo que utilizavam essa retórica exatamente para dizer que quem possuía emprego era um privilegiado e que privilégios não se coadunam com direitos.
d) “Terceirização não precariza”
Dizer que a terceirização não precariza é tentar fazer todo mundo de idiota, afinal, a situação das condições de trabalho dos terceirizados na realidade brasileira tem sido, há mais de 20 anos, a de um elevadíssimo número de acidentes do trabalho, inclusive fatais; de trabalho em vários anos seguidos sem gozo de férias; de jornadas excessivas; de não recebimento de verbas rescisórias; de ausência de recolhimentos previdenciários e fundiários, sem falar do assédio provocado pela discriminação e, mais propriamente, pela invisibilidade.
Neste aspecto, aliás, é bastante reveladora a preocupação do governo federal, que em vez de se colocar contrário ao projeto, já que advindo do denominado Partido dos Trabalhadores, tentou alterar o PL de modo a evitar que a terceirização pudesse gerar prejuízos aos cofres do governo no que se refere à falta de recolhimentos previdenciários, fundiários e fiscais, buscando fazer com que tais obrigações fossem assumidas diretamente pelas empresas tomadoras dos serviços. A preocupação do governo, que acabou não sendo acatada, ao menos por enquanto, é uma confissão de que terceirização precariza. É evidente, ademais, que se uma empresa, que detém capital, contrata outra para a realização de serviços, a tendência é a de que a empresa contratada não possua o mesmo potencial capitalista, sofrendo muito mais facilmente as variações da economia, descarregando as consequências sobre a parte mais fraca, os trabalhadores.
De todo modo, a forma tentada pelo governo em preservar o seu interesse é uma ilusão porque a sua perda se consumaria mesmo que a medida intentada fosse acatada, pois com a precarização os ganhos dos trabalhadores tendem a diminuir, reduzindo, por conseguinte, a base sobre a qual o governo faz suas arrecadações.
f) “Preocupação com o negócio principal”
Diz que a terceirização advém da “necessidade de que a empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio principal”. Ocorre que o objetivo do PL é ampliar as possibilidades de terceirização para qualquer tipo de serviço. Assim, a tal empresa moderna, nos termos do PL, caso aprovado, poderá ter apenas trabalhadores terceirizados, restando a pergunta de qual seria, então, o “negócio principal” da empresa moderna? E mais: que ligação direta essa empresa moderna possuiria com o seu “produto”?
E se concretamente a efetivação de uma terceirização de todas as atividades, gerando o efeito óbvio da desvinculação da empresa de seu produto, pode, de fato, melhorar a qualidade do produto e da prestação do serviço, então a empresa contratante não possui uma relevância específica. Não possui nada a oferecer em termos produtivos ou de execução de serviços, não sendo nada além que uma instituição cujo objeto é administrar os diversos tipos de exploração do trabalho. Ou seja, a grande empresa moderna, nos termos do projeto, é meramente um ente de gestão voltado a organizar as formas de exploração do trabalho, buscando fazer com que cada forma lhe gere lucro. O seu “negócio principal”, que pretende rentável, é, de fato, o comércio de gente, que se constitui, ademais, apenas uma face mais visível do modelo de relações capitalistas, que está, todo ele, baseado na exploração de pessoas conduzidas ao trabalho subordinado pela necessidade e falta de alternativa.
f) “Dupla garantia para os trabalhadores”
Diz-se que para os trabalhadores o PL é um avanço porque com ele os trabalhadores teriam duas entidades a lhes garantir a efetividade dos direitos: a prestadora (sua empregadora) e a tomadora.
Primeiramente, vale o registro de que o PL permite que a própria prestadora terceirize, pois se toda empresa pode terceirizar sua atividade-fim, a empresa de terceirização, cuja finalidade é comercializar gente, também poderá, ela própria, terceirizar. Aliás, o PL faz alusão a essa possibilidade expressamente.
Então, segundo o argumento utilizado, esse trabalhador “quarteirizado” teria ainda mais garantias que o terceirizado, o que já demonstra o absurdo da argumentação, pois é por demais evidente que quanto mais o capital se organiza em relações intermediadas, mais o capital das prestadoras de serviço se fragiliza, fazendo com que, obviamente, se diminua a participação do trabalho na distribuição da riqueza produzida.
O que a tomadora, considerada como aquela que efetivamente detém capital, pode fazer é garantir o ressarcimento econômico de direitos que não foram cumpridos, mas esses direitos, na dinâmica da intermediação, já foram reduzidos. Além disso, o percurso para se chegar a essa garantia é necessariamente judicial, vez que não há fórmula que obrigue a tomadora à prática de tal ato senão pela via do processo na Justiça do Trabalho. No processo, prevê-se uma extensa discussão acerca dessa responsabilidade, fazendo com que o recebimento do trabalhador de seus direitos diretamente da tomadora seja incerto e demorado.
Aliás, cumpre advertir que as lides processuais, no contexto de um modelo de produção que tem a terceirização como regra, tendem a se complicar excessivamente, com número elevado de empresas reclamadas em que cada processo e, consequentemente, com majoração de incidentes processuais, recursos etc.
O Judiciário trabalhista, que já se encontra atolado, embora ainda consiga prestar um serviço razoavelmente satisfatório, tende a entrar em estado pleno de falência institucional, provocando, e vendo retroalimentados os seus problemas, a prática do desrespeito deliberado e reiterado da legislação trabalhista.
Em suma, com a terceirização, o trabalhador não está duplamente garantido, mas verá multiplicar em várias vezes a sua dificuldade de fazer valer seus direitos, que, vale repetir, já serão reduzidos, caso acatada a estratégia contida no PL 4.330.
g) Efeito concreto
Por fim, falando de forma mais clara da realidade, o que se almeja com o PL 4.330, que, vale reforçar, está sendo incentivado por segmentos empresariais ligados ao grande capital, não é, e não poderia mesmo ser, a melhoria da condição de vida dos trabalhadores e a efetividade plena dos direitos trabalhistas.
Esquematicamente falando, o que se pretende com o PL 4.330 é:
– fragmentar a classe trabalhadora;
– dificultar a formação da consciência de classe;
– estimular a concorrência entre os trabalhadores;
– difundir com mais facilidade as estratégias de gestão baseadas em fixação de metas impossíveis de serem alcançadas e assediantes, detonadoras da auto-estima;
– incentivar práticas individualistas e, consequentemente, destrutivas da solidariedade;
– inibir a capacidade de organização coletiva;
– minar o poder de resistência e de luta dos trabalhadores;
– aumentar a submissão (juridicamente apelidada de subordinação) do trabalhador;
– facilitar a mercantilização da mão-de-obra.
A terceirização, disseminada como legítima e sem qualquer limite ou peia, permite que esses efeitos se produzam muito mais facilmente, ainda mais quando se utilizem das técnicas administrativas que lhe são características, tais como constantes trocas de horários de trabalho, alterações de postos de trabalho e intensificação da rotatividade de mão-de-obra.
Tudo isso somado, por certo, faz prever um cenário de grandes perdas e sofrimentos para a classe trabalhadora com a aprovação do PL 4.330, representando, como dito pelo sociólogo Ruy Braga, “a maior derrota popular desde o golpe de 64”[2], mas isso caso seja, de fato, aplicado na forma imaginada e planejada pelo setor econômico.
Ocorre que as complexidades do mundo jurídico vão bem além das vontades daqueles que, detendo hegemonia econômica, se consideram também os “donos do poder”. Como já advertido em outro texto, é uma ilusão considerar que “a ordem jurídica constitucional, que foi pautada pela lógica da prevalência dos Direitos Humanos e da proeminência dos Direitos Sociais, exatamente para inibir que os interesses puramente econômicos fossem utilizados como argumentos para reduzir o patamar de civilização historicamente alcançado, possa ser utilizada como fundamento para garantir valores sem qualquer sentido social, como a ‘liberdade de contratar’ e a ‘segurança jurídica’”, sendo certo que não será “uma lei ordinária, votada por pressão da bancada empresarial, que vai conseguir fazer letra morta da Constituição ou mesmo impedir que juízes trabalhistas cumpram o seu dever funcional de negar vigência a qualquer lei que fira a Constituição e impeçam a eficácia dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais Sociais”[3].
2. Enfrentamento
Essa característica do âmbito jurídico faz pressupor que diante de eventual aprovação do PL 4.330/04, por mais trágico que possa ser para a classe trabalhadora, muitas novas tensões advirão, até porque não é minimamente razoável imaginar que o projeto constitucional de justiça social e a racionalidade dos Direitos Humanos não sejam defendidos de forma firme e consistente pelos profissionais ligados ao Direito do Trabalho e às diversas áreas do conhecimento que se interligam com o mundo do trabalho.
Não cabe neste momento antecipar os vários argumentos jurídicos que poderão ser utilizados como resistência a essa tentativa de derrocada da ordem constitucional, vez que a luta agora ainda é pela rejeição do PL 4.330/04.
De todo modo, para que se tenha um pouco do alcance desse movimento de resistência, vale o registro do Manifesto, expedido em 12 de abril de 2015, pela Rede Nacional de Pesquisas e Estudos em Direito do Trabalho e da Seguridade Social[4].
* Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da USP
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[1]. Vide, a propósito, o texto, “Modernidade e Direito do Trabalho”, in: http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/52486/008_soutomaior.pdf?sequence=1
[2]. http://www.cartacapital.com.br/economia/lei-da-terceirizacao-e-a-maior-derrota-popular-desde-o-golpe-de-64-2867.html, acesso em 12/04/15.
[3]. http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/06/pl-4-33094-maldade-explicita-e-ilusao/, acesso em 12/04/15.
[4]. http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/13/manifesto-contra-o-pl-4-33004/, acesso em 14/04/15.

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